Às cinco horas da manhã já se podia ouvir os primeiros movimentos na fazenda do Tio Manoel Rodrigues, escuro ainda, o inverno cortante do pampa, a lida do campo era dura, mas agradável. Era o que lhe dava a coragem e o entusiasmo para saltar da cama, abrindo num arranco só o seu lado das cobertas em direção às bombachas, às botas, ao cinturão para a arma-de-fogo e o grande facão, meio solto, meio preso, atravessado nas costas; a camisa de flanela, quentinha, e os blusões de pura lã uruguaia garantiam a ida ao banheiro e à cozinha, para buscar a cuia e a chaleira, já prontas, preparadas “pelas negras da cozinha”. Era o primeiro mate do dia.
Eu via, do quarto ao lado. Eu aprendia e procurava fazer como ele. O frio do pampa era de rachar a pele e a alma. Doía fundo!
Montar no cavalo, recorrer os campos, distribuir as ordens, revisar os animais, carregar nos lombilhos algumas ovelhas machucadas ou doentes, perscrutar as necessidades dos pastos, sentir o vento, olhar o céu, passar ao capataz e aos peões as suas impressões sobre o tempo, as implicações desse possível futuro sobre os trabalhos que se desenvolviam na fazenda, e já se aproximava o meio-dia, hora de voltar, apear, dar uma olhada nos pátios, gritar avisos, ordens, e entrar “nas casas”, para o segundo mate do dia, após tirar as botas e calçar as alpargatas, dando sossego aos pés e puxando, com gosto, o ronco da mateada.
O progresso chegava célere ao interior do Rio Grande, não somente via Porto Alegre, ou Pelotas, esta, uma das principais cidades do Estado gaúcho, mas também via Montevidéu, a capital do Uruguai, cognominada “a Suíça latino-americana”, toda européia e sofisticada nos seus magazines estilo londrino e a sua vida noturna repleta de cassinos e conversas sobre as últimas de Buenos Aires e os resultados do jóquei.
O Tio Manoel pressentia a fronteira, a encruzilhada entre o velho e o novo que se avizinhava massacrante: o cavalo e o trator, a bombacha e a calça Lee; a enorme antena de televisão, a única do município, instalada por técnicos pagos a peso de ouro, vindos de Montevidéu, era prova suficiente da lucidez que o assaltava e mexia com seus valores conservadores demais, tradicionalíssimos, nada revolucionários, politicamente, para os padrões de pensamento moderno que se agigantavam sobre o antigo Rio Grande de São Pedro. Mas embora conservador de valores, examinava detidamente o moderno da técnica, das inovações. Este era o seu lado revolucionário, quem sabe para manter as aparências frente ao seu grande público, estar na crista da onda, e assim evoluía, de um lado, resmungando contra os novos tempos e seus valores, e de outro, saltando na frente dos seus contemporâneos, adquirindo tudo o que a revolução tecnológica norte-americana trazia em sua invasão na América Latina. Conviviam ali, na grande fazenda, o passado – filho de Martin Fierro - com cheiro de vento bravio e caudilhesco do pampa, das sesmarias, dos cavalos xucros, e as granjas superequipadas de ceifas, Ford’s Majors, Toiotas e equipamentos de rádio-comunicação.
Ele não gostava do João Goulart, odiava o PTB do Getúlio Vargas, arrepiava-se ao ouvir falar de Fernando Ferrari e Reforma Agrária, era racista, achava que lugar de negro era na cozinha e que Deus fez uns para mandar e outros para obedecer, eternamente; não acreditava que o ensino pudesse modificar esse panorama e que as coisas eram assim porque eram, e por isso gostava dos militares, queria-os no poder, que derrubassem esse comunista do Jango e colocassem o país novamente nos eixos, para acabar com essa bagunça de empregados e líderes sindicais quererem externar livremente as suas opiniões, onde é que já se viu tanta barbaridade, não se tinha segurança para o capital, ainda bem que quase todo o seu dinheiro estava bem guardado em bancos uruguaios pois, a qualquer loucura do Jango, bandeava-se com seus negócios para el país hermano.
- O tal livro nunca saiu, essa é a verdade. Bêbado fala demais! Discute muito! Aqui pra nós: tu já viste grandes obras saírem voando de mesa de bar? Nunquinha, cara. De saideira em saideira vão fazendo enormes revoluções, tudo de mentirinha! Coisa de bêbado, e drogado. Verdade nua e crua!
Borracho é a mãe! Que merda! Quem é esse idiota pra me julgar? E quem te disse que não vou fazer o livro?
Não sei bem quando decidi fazer o trabalho sobre o acidente que explodiu o avião do deputado Fernando Ferrari. Quando decidi começar eu me lembro bem, foi depois que explodiu o avião do senador Marcos Freire, acabando de uma tacada só com todo o comando do primeiro Ministério da Reforma Agrária do Brasil, cerca de trinta anos após o acidente do Ferrari.
Acontece que sou um cara sensível, romântico. Sei que vivo de imagens e que as carrego como quem carrega flores. Aliás, pra que tantas flores?
Qual o acontecimento, o fio do pensamento que poderia demarcar com exatidão o começo dos acontecimentos? Eu procurava, pesquisava, sabia que havia uma íntima ligação de todos os assuntos.
O livro estaria pronto se eu me dispusesse a virar um burocrata da literatura e da pesquisa. Material eu tenho, não me faltavam entrevistas, depoimentos, inclusive de vários deputados, em jornais da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, como aquele dos trinta anos da morte do Ferrari. Teve um dos deputados que disse na lata que ele foi assassinado. Só que eu não tenho saco, e também acho que não adianta, não vai mudar nada, e esse tipo de assassinato nunca deixa rastro.
Cheguei até a imaginar uma viagem a Santa Maria, onde o Fernando Ferrari nasceu. Foi no distrito de São Pedro. Ele fez o ginásio em Santa Maria, com os irmãos maristas. Fez faculdade de Direito e de Economia, e pós-graduou-se em Sociologia no Rio de Janeiro. Sei tudo do cara, e daí? Daí que esse idiota talvez tenha razão. Esse negócio da viagem a Santa Maria, cheguei mesmo a planejá-la no bar, e tomamos um porre homérico fazendo essa viagem.
O Ferrari era do PTB, mas foi expulso. A expulsão foi um negócio super duvidoso e arbitrário, e numa época em que partido político era realmente sério e importante. Acho que o processo foi montado em Porto Alegre. Então ele fundou o MTR - Movimento Trabalhista Renovador, e celebrizou-se na famosa campanha das mãos limpas, como candidato a Vice-Presidente do Brasil. Somente a escola e as crianças devem ter privilégios. Imagina, com esse slogan, se o sistema não iria acabar com esse doido. Um louco que parecia, com o perdão da comparação barata, uma espécie de bispo Macedo da época, só que ao invés de ser no terreno religioso, era algo muito mais imediatamente perigoso. Tratava-se de Reforma Agrária! E o povo já estava adorando aquele cara de sorriso avassalador!
Na verdade, acho que não faço uma peça única, um trabalho acabado, como o livro, porque quero sempre encontrar a tal linha que une todas as coisas.
Eu já tinha encontrado fatos bem demarcadores, além do básico, naturalmente: que ele nasceu em 14 de Julho de 1921; que foi um dos fundadores do PTB e deputado estadual de 1947 a 1950, pelo Rio Grande. Não tenho detalhes, como o tipo do avião, sei apenas que era teco-teco, essas coisas. Fico mais na filosofia do negócio e vou me esquecendo de encher a lingüiça.
Já o Tio Manoel Rodrigues era descendente do Gumercindo Saraiva, El General de La Libertad, chefe militar da revolução federalista de 1893.
O Gumercindo Saraiva desafiou os desmandos da República de Floriano Peixoto, na revolução mais sangrenta do sul do país, chamada “a revolução da degola”, porque os caras não faziam prisioneiros, degolavam a todos, em ambos os lados da contenda, e isso não consta nos livros de história das nossas escolas.
O Fernando Ferrari elaborou o Estatuto da Terra, uma lei sócio-humanística formidável, porém a mais desrespeitada do Brasil, até hoje.
E daí que eu vinha numa linha de pensamento que acabava por chegar na segunda explosão, que foi a do avião do Marcos Freire, quando explodiu toda a cúpula do Ministério da Reforma Agrária, durante o governo Sarney.
É pesquisa demais pra fazer! Dessa última morte eu tenho esta entrevista do senador na revista Senhor 339, do dia 15 de setembro de 1987: " O avião que levava Marcos Freire a Brasília explode pouco depois de decolar no aeroporto de Carajás, é a notícia estampada na maioria dos jornais brasileiros. O ministro Marcos Freire estava otimista na manhã de sexta-feira, dia 4, véspera do seu qüinquagésimo sexto aniversário... além do ministro Marcos Freire, morreram o secretário-geral do Mirad, Dirceu Pessoa, o presidente do Incra, José Eduardo Vieira Radnan, e seu chefe de gabinete, Ivan Ribeiro, o secretário particular do ministro, José Teixeira, e seu pai, Amaury Teixeira, e toda a tripulação formada pelo coronel Wellington Rezende, o co-piloto, capitão Jorge Soshimura e o terceiro sargento-mecânico Carlos Alberto. A versão de sabotagem do avião do ministro prosperou nas horas seguintes. Uma possibilidade que crescia em função das ameaças telefônicas que Freire e toda a sua família passaram a sofrer tão logo ele assumiu o ministério, em substituição a Dante de Oliveira. Mas as causas reais do acidente só serão conhecidas após a rigorosa investigação determinada pelo governo...”Os últimos dias do Tio Manoel Rodrigues não saíam da minha mente. A sua irritação, o seu nervosismo, a sua ira com o processo político e com as transformações sociais e mais uma úlcera estomacal que corroía completa e definitivamente o seu principal órgão de choque.
Como me comoveu quando eu encontrei, na casa dele, aquele livro, escrito em espanhol, sobre a vida do Gumercindo Saraiva. Cheguei a decorar o primeiro parágrafo: Ya se van echando las sombras sobre la tierra uruguaya... Eu adorava isso, por causa da minha veia poética.Anos depois, dei pra pensar que uma morte honrosa seria morrer de bala, por uma causa, ou explodido num avião. O Gumercindo morreu de bala na nuca, e depois teve a sua cabeça cortada, assim como a do Lampião e a da Maria Bonita. Eu? Morto na merda, essa é que é a verdade. Cirrose hepática aos trinta e dois é, sim, morrer na merda, ou melhor, na cachaça, o que dá no mesmo.
Nunca gostei de velórios, muito menos, evidentemente, do meu. Sinto-me idiota, assim, deitado, com esses imbecis emitindo opiniões sobre mim.
Levo uma obra inacabada comigo, talvez mais, que se esvaíu nas espumas dos meus copos de cerveja, como a própria Reforma Agrária, que morre a cada dia nas mesas dos bares da vida, num velório interminável de discussões etílico-burguesas, ou simplesmente porque seu nascimento, no Brasil, é mesmo um incorrigível parto estagnado, à espera de uma cesariana milagrosa que há de vir unicamente por obra de Deus.
Volto para a fazenda do Tio Manoel. Sinto o cheiro dos capões de mato, o barulho que faço quando jogo pedras, despreocupadamente, no monte de ossadas limpas e brilhantes ao sol, detrás do grande galpão, próximo ao local de carnear as ovelhas para o churrasco da peonada. O vento que vem da Lagoa Mirim tem um cheiro adocicado e lembra também o gosto do junco recém puxado das suas margens arenosas, quando os arrancamos para mordiscá-los. O pampa tem a magia dos horizontes que se perdem na imensidão infinita: pra todos os lados sente-se liberdade, uma sensação de vôo, pássaro solto, vento bravo, igual, como agora, como neste mesmíssimo momento, sem peso, sem prisões, sem corpo, recomeçando, renascendo, pampa, vida, pampa, horizontes.
Eu via, do quarto ao lado. Eu aprendia e procurava fazer como ele. O frio do pampa era de rachar a pele e a alma. Doía fundo!
Montar no cavalo, recorrer os campos, distribuir as ordens, revisar os animais, carregar nos lombilhos algumas ovelhas machucadas ou doentes, perscrutar as necessidades dos pastos, sentir o vento, olhar o céu, passar ao capataz e aos peões as suas impressões sobre o tempo, as implicações desse possível futuro sobre os trabalhos que se desenvolviam na fazenda, e já se aproximava o meio-dia, hora de voltar, apear, dar uma olhada nos pátios, gritar avisos, ordens, e entrar “nas casas”, para o segundo mate do dia, após tirar as botas e calçar as alpargatas, dando sossego aos pés e puxando, com gosto, o ronco da mateada.
O progresso chegava célere ao interior do Rio Grande, não somente via Porto Alegre, ou Pelotas, esta, uma das principais cidades do Estado gaúcho, mas também via Montevidéu, a capital do Uruguai, cognominada “a Suíça latino-americana”, toda européia e sofisticada nos seus magazines estilo londrino e a sua vida noturna repleta de cassinos e conversas sobre as últimas de Buenos Aires e os resultados do jóquei.
O Tio Manoel pressentia a fronteira, a encruzilhada entre o velho e o novo que se avizinhava massacrante: o cavalo e o trator, a bombacha e a calça Lee; a enorme antena de televisão, a única do município, instalada por técnicos pagos a peso de ouro, vindos de Montevidéu, era prova suficiente da lucidez que o assaltava e mexia com seus valores conservadores demais, tradicionalíssimos, nada revolucionários, politicamente, para os padrões de pensamento moderno que se agigantavam sobre o antigo Rio Grande de São Pedro. Mas embora conservador de valores, examinava detidamente o moderno da técnica, das inovações. Este era o seu lado revolucionário, quem sabe para manter as aparências frente ao seu grande público, estar na crista da onda, e assim evoluía, de um lado, resmungando contra os novos tempos e seus valores, e de outro, saltando na frente dos seus contemporâneos, adquirindo tudo o que a revolução tecnológica norte-americana trazia em sua invasão na América Latina. Conviviam ali, na grande fazenda, o passado – filho de Martin Fierro - com cheiro de vento bravio e caudilhesco do pampa, das sesmarias, dos cavalos xucros, e as granjas superequipadas de ceifas, Ford’s Majors, Toiotas e equipamentos de rádio-comunicação.
Ele não gostava do João Goulart, odiava o PTB do Getúlio Vargas, arrepiava-se ao ouvir falar de Fernando Ferrari e Reforma Agrária, era racista, achava que lugar de negro era na cozinha e que Deus fez uns para mandar e outros para obedecer, eternamente; não acreditava que o ensino pudesse modificar esse panorama e que as coisas eram assim porque eram, e por isso gostava dos militares, queria-os no poder, que derrubassem esse comunista do Jango e colocassem o país novamente nos eixos, para acabar com essa bagunça de empregados e líderes sindicais quererem externar livremente as suas opiniões, onde é que já se viu tanta barbaridade, não se tinha segurança para o capital, ainda bem que quase todo o seu dinheiro estava bem guardado em bancos uruguaios pois, a qualquer loucura do Jango, bandeava-se com seus negócios para el país hermano.
- O tal livro nunca saiu, essa é a verdade. Bêbado fala demais! Discute muito! Aqui pra nós: tu já viste grandes obras saírem voando de mesa de bar? Nunquinha, cara. De saideira em saideira vão fazendo enormes revoluções, tudo de mentirinha! Coisa de bêbado, e drogado. Verdade nua e crua!
Borracho é a mãe! Que merda! Quem é esse idiota pra me julgar? E quem te disse que não vou fazer o livro?
Não sei bem quando decidi fazer o trabalho sobre o acidente que explodiu o avião do deputado Fernando Ferrari. Quando decidi começar eu me lembro bem, foi depois que explodiu o avião do senador Marcos Freire, acabando de uma tacada só com todo o comando do primeiro Ministério da Reforma Agrária do Brasil, cerca de trinta anos após o acidente do Ferrari.
Acontece que sou um cara sensível, romântico. Sei que vivo de imagens e que as carrego como quem carrega flores. Aliás, pra que tantas flores?
Qual o acontecimento, o fio do pensamento que poderia demarcar com exatidão o começo dos acontecimentos? Eu procurava, pesquisava, sabia que havia uma íntima ligação de todos os assuntos.
O livro estaria pronto se eu me dispusesse a virar um burocrata da literatura e da pesquisa. Material eu tenho, não me faltavam entrevistas, depoimentos, inclusive de vários deputados, em jornais da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, como aquele dos trinta anos da morte do Ferrari. Teve um dos deputados que disse na lata que ele foi assassinado. Só que eu não tenho saco, e também acho que não adianta, não vai mudar nada, e esse tipo de assassinato nunca deixa rastro.
Cheguei até a imaginar uma viagem a Santa Maria, onde o Fernando Ferrari nasceu. Foi no distrito de São Pedro. Ele fez o ginásio em Santa Maria, com os irmãos maristas. Fez faculdade de Direito e de Economia, e pós-graduou-se em Sociologia no Rio de Janeiro. Sei tudo do cara, e daí? Daí que esse idiota talvez tenha razão. Esse negócio da viagem a Santa Maria, cheguei mesmo a planejá-la no bar, e tomamos um porre homérico fazendo essa viagem.
O Ferrari era do PTB, mas foi expulso. A expulsão foi um negócio super duvidoso e arbitrário, e numa época em que partido político era realmente sério e importante. Acho que o processo foi montado em Porto Alegre. Então ele fundou o MTR - Movimento Trabalhista Renovador, e celebrizou-se na famosa campanha das mãos limpas, como candidato a Vice-Presidente do Brasil. Somente a escola e as crianças devem ter privilégios. Imagina, com esse slogan, se o sistema não iria acabar com esse doido. Um louco que parecia, com o perdão da comparação barata, uma espécie de bispo Macedo da época, só que ao invés de ser no terreno religioso, era algo muito mais imediatamente perigoso. Tratava-se de Reforma Agrária! E o povo já estava adorando aquele cara de sorriso avassalador!
Na verdade, acho que não faço uma peça única, um trabalho acabado, como o livro, porque quero sempre encontrar a tal linha que une todas as coisas.
Eu já tinha encontrado fatos bem demarcadores, além do básico, naturalmente: que ele nasceu em 14 de Julho de 1921; que foi um dos fundadores do PTB e deputado estadual de 1947 a 1950, pelo Rio Grande. Não tenho detalhes, como o tipo do avião, sei apenas que era teco-teco, essas coisas. Fico mais na filosofia do negócio e vou me esquecendo de encher a lingüiça.
Já o Tio Manoel Rodrigues era descendente do Gumercindo Saraiva, El General de La Libertad, chefe militar da revolução federalista de 1893.
O Gumercindo Saraiva desafiou os desmandos da República de Floriano Peixoto, na revolução mais sangrenta do sul do país, chamada “a revolução da degola”, porque os caras não faziam prisioneiros, degolavam a todos, em ambos os lados da contenda, e isso não consta nos livros de história das nossas escolas.
O Fernando Ferrari elaborou o Estatuto da Terra, uma lei sócio-humanística formidável, porém a mais desrespeitada do Brasil, até hoje.
E daí que eu vinha numa linha de pensamento que acabava por chegar na segunda explosão, que foi a do avião do Marcos Freire, quando explodiu toda a cúpula do Ministério da Reforma Agrária, durante o governo Sarney.
É pesquisa demais pra fazer! Dessa última morte eu tenho esta entrevista do senador na revista Senhor 339, do dia 15 de setembro de 1987: " O avião que levava Marcos Freire a Brasília explode pouco depois de decolar no aeroporto de Carajás, é a notícia estampada na maioria dos jornais brasileiros. O ministro Marcos Freire estava otimista na manhã de sexta-feira, dia 4, véspera do seu qüinquagésimo sexto aniversário... além do ministro Marcos Freire, morreram o secretário-geral do Mirad, Dirceu Pessoa, o presidente do Incra, José Eduardo Vieira Radnan, e seu chefe de gabinete, Ivan Ribeiro, o secretário particular do ministro, José Teixeira, e seu pai, Amaury Teixeira, e toda a tripulação formada pelo coronel Wellington Rezende, o co-piloto, capitão Jorge Soshimura e o terceiro sargento-mecânico Carlos Alberto. A versão de sabotagem do avião do ministro prosperou nas horas seguintes. Uma possibilidade que crescia em função das ameaças telefônicas que Freire e toda a sua família passaram a sofrer tão logo ele assumiu o ministério, em substituição a Dante de Oliveira. Mas as causas reais do acidente só serão conhecidas após a rigorosa investigação determinada pelo governo...”Os últimos dias do Tio Manoel Rodrigues não saíam da minha mente. A sua irritação, o seu nervosismo, a sua ira com o processo político e com as transformações sociais e mais uma úlcera estomacal que corroía completa e definitivamente o seu principal órgão de choque.
Como me comoveu quando eu encontrei, na casa dele, aquele livro, escrito em espanhol, sobre a vida do Gumercindo Saraiva. Cheguei a decorar o primeiro parágrafo: Ya se van echando las sombras sobre la tierra uruguaya... Eu adorava isso, por causa da minha veia poética.Anos depois, dei pra pensar que uma morte honrosa seria morrer de bala, por uma causa, ou explodido num avião. O Gumercindo morreu de bala na nuca, e depois teve a sua cabeça cortada, assim como a do Lampião e a da Maria Bonita. Eu? Morto na merda, essa é que é a verdade. Cirrose hepática aos trinta e dois é, sim, morrer na merda, ou melhor, na cachaça, o que dá no mesmo.
Nunca gostei de velórios, muito menos, evidentemente, do meu. Sinto-me idiota, assim, deitado, com esses imbecis emitindo opiniões sobre mim.
Levo uma obra inacabada comigo, talvez mais, que se esvaíu nas espumas dos meus copos de cerveja, como a própria Reforma Agrária, que morre a cada dia nas mesas dos bares da vida, num velório interminável de discussões etílico-burguesas, ou simplesmente porque seu nascimento, no Brasil, é mesmo um incorrigível parto estagnado, à espera de uma cesariana milagrosa que há de vir unicamente por obra de Deus.
Volto para a fazenda do Tio Manoel. Sinto o cheiro dos capões de mato, o barulho que faço quando jogo pedras, despreocupadamente, no monte de ossadas limpas e brilhantes ao sol, detrás do grande galpão, próximo ao local de carnear as ovelhas para o churrasco da peonada. O vento que vem da Lagoa Mirim tem um cheiro adocicado e lembra também o gosto do junco recém puxado das suas margens arenosas, quando os arrancamos para mordiscá-los. O pampa tem a magia dos horizontes que se perdem na imensidão infinita: pra todos os lados sente-se liberdade, uma sensação de vôo, pássaro solto, vento bravo, igual, como agora, como neste mesmíssimo momento, sem peso, sem prisões, sem corpo, recomeçando, renascendo, pampa, vida, pampa, horizontes.