CURRAL
GRANDE
Quando meu pai faleceu,
minha mãe arrendou o nosso campo para o Senhor Antônio Bermudes e foi morar na
cidade.
... distante mais ou menos
cinquenta ou sessenta metros do corpo da casa situava-se o galpão crioulo,
usado para encilhar os cavalos nos dias de chuva. Era uma construção rústica,
de adobe, coberta de Santa Fé, com as dimensões de aproximadamente duzentos
metros quadrados.
Nesse galpão o fogo de chão
era mantido aceso quase todo o dia. Uma chaleira de ferro fumegava suavemente
pronta para quem quisesse tomar um chimarrão. A casa ficava situada na parte da
frente do terreno, fechando a porteira de um capão-de-mato de eucalipto
plantados em forma de U, distante das construções mais ou menos cem metros; e
no fundo do campo o limite da propriedade era demarcado pela Lagoa Mangueira,
precedida por toda a margem Leste por um banhado de palha de trezentos metros
de largura, que deveria ser atravessado para chegar-se a praia de areia à beira
da lagoa, cujas águas límpidas proporcionavam um magnífico banho.
A travessia do passo para
chegar-se à lagoa era feita a cavalo ou nadando como várias vezes fazia, quando
ia lá para tomar banho solito, cavalgando uma petiça zaina.
Quando havia mulheres para a
travessia, usava-se um bote com lotação para cinco ou seis pessoas,
impulsionado à vara – eu era perito!
DESTINO:
SANTA VITÓRIA DO PALMAR
... e seguimos viagem. Foi
uma odisseia. O Nilo era uma fera para dirigir. O mar continuava crescido, a
praia estava intransitável com inúmeros riachinhos barrancosos no trajeto,
impedindo o trânsito.
Quando isso acontecia, o
Nilo contornava o riacho por dentro do mar e a água do mar entrava pelo piso do
automóvel como um chafariz, deixando-nos bem molhados, principalmente os pés.
De vez em quando era preciso
descer para empurrar o carro que molhava as velas e se apagava. O Lino descia
para secar as velas do motor e nessas ocasiões as rodas do carrinho se
enterravam na areia umedecida pela água e era uma luta para tirá-lo do
atoleiro.
Fazia um frio de matar
passarinho e nós continuávamos seguindo naquela imensa e solitária estrada onde
só se via terra e mar. Fizemos uma parada no Albardão e na casa do faroleiro,
que era o Trinta e Um, filho do velho Documento, da Barra do Chuí e ali tomamos
um reconfortante café, compramos mais uma garrafa de canha e seguimos viagem.
Do Albardão à Barra do Chuí
são mais ou menos uns cento e vinte quilômetros. Era por volta de dezesseis
horas da uma tarde fria e cinzenta, o vento soprava com menor intensidade, em
consequência o mar estava mais calmo e a praia ficava cada vez melhor, o
fordzinho obedecia perfeitamente ao comando do chofer e dono, o extraordinário amigo
Lino.
A viagem se tornou mais
tranquila e o trago corria solto, para combater o frio, que cada vez mais nos
castiga. Mais alegres, começamos a declamar.
Chegamos na Barra à boca da
noite e descemos um pouco para espichar as pernas e comemorar a vitória de
termos chegado a terra firme e continuamos a viagem de mais trinta quilômetros
até Santa Vitória do Palmar, aonde chegamos a cerca de dez horas da noite, com
a graça de Deus.
Com frio e os pés ainda
molhados, mas feliz; a mãe, vendo-me assim encarangado disse à Tota para trazer
um cálice de licor de butiá, nossa fruta da terra. Estava uma maravilha, mas
tomei pouco, pois tínhamos bebido muito na viagem. Tomei um banho reparador,
conversei um pouco e fui para a cama.
Na manhã seguinte
levantei-me cedo, conversei um pouco com o pessoal da casa e fui para a rua
sentir o pulsar da minha terra natal. Como era linda! Aos meus olhos, ao menos.
Naquela época era praxe os estudantes que iam para fora do município, procurar
os parentes, um por um, dando notícias, mesmo os que morassem longe.
A
PRAÇA DOS ITALIANOS – A PRACINHA
“Pido a lós santos Del cielo que ayudem
mi pensamiento
Les pido en este momento que voy a
contar mi historia
Me refresquen La memória y aclaren mi
entendimiento”
Marin Fierro
Nasci em Santa Vitória do
Palmar, a terra dos verdes palmares, naquela imensa planície apertada entre a
Lagoa Mirim e o Oceano Atlântico, no extremo meridional de nossa pátria,
fustigada na estação de inverno pelos ventos pampeiro e minuano, vindos das
planuras dos países do Prata.
Sou o caçula de uma família
de onze irmãos, contando comigo, sendo sete homens e quatro mulheres.
Morávamos numa casa modesta,
porém ampla o suficiente para nossa família e contendo, ainda, um grande
terreno na parte dos fundos, no qual se plantava verduras e milho.
Havia um galpão de madeira,
distante cerca de vinte metros da residência onde se guardava lenha e diversos
utensílios de trabalho na terra, como enxada, pás, ancinhos, etc.
Aquele galpão era também o
palco preferido para as brincadeiras. Ali éramos fazendeiros, construindo os
aramados das propriedades com pedaços de bambu, onde manobrávamos com nosso
gado representado por ossos calcinados das colunas vertebrais e dos joelhos de
gado vacum.
Em nossa casa havia também
um cachorrinho branco chamado pombinha. Era de estatura mediana e raça
indefinida, temperamento dócil e brincalhão, porém agia como um verdadeiro
guardião de nossa residência. Ai de quem entrasse em nosso pátio à noite. O
pombinha se botava em cima que era uma verdadeira fera. Lembro-me de uma noite em
que os irmãos mais velhos tinham saído, ficando em casa eu, ainda guri pequeno
e minha mãe; um ladrão entrou em nosso pátio e para se livrar dos dentes do
pombinha deu-lhe diversas punhaladas, mas o cachorrinho não se entregou e botou
o larápio a correr.
Felizmente o querido cãozinho,
devidamente tratado, em pouco tempo ficou curado dos ferimentos recebidos do
assaltante noturno e continuou vivendo conosco ainda por muitos anos.
Nossa moradia ficava situada
perto da Praça dos Italianos (depois, Praça dos Donato). Naquela época era
conhecida apenas como A Pracinha.
Consistia num quadrado de
terra de mais ou menos cem metros por cem, cercado por todos os lados com duas
fileiras de acácias e cortada em diagonal por duas fileiras das mesmas árvores,
formando assim quatro gramados que serviam de campo de futebol para toda a
gurizada dos arredores.
Jogava-se durante todos os
dias de manhã e de tarde, depois das aulas. Os times eram formados na hora
pelos mais velhos ou então pelos eventuais donos da bola, quase sempre de
borracha e raramente de couro.
As partidas eram disputadas
com os jogadores calçando alpargatas ou tênis, e a maioria de pé-no-chão, o que
acarretava a ocorrência de algum dedão do pé quebrado e algumas das unhas
rachadas, em virtude de raízes de árvores que emergiam do solo.
O time principal, que
representava A Pracinha, nas disputas com os clubes representantes de outras
zonas eram escolhidos entre os mais velhos e melhores jogadores, que
constituíam o “primeiro quadro”. Dele faziam parte meu irmão Manduca, o Mário
Donato, o Lito Morrone, o Jorge, de apelido “lampião”, e outros.
O segundo time era constituído
com os de menor idade. Naquele tempo existia uma grande rivalidade entre a
gurizada do Centro e da Pracinha, inclusive com batalhas noturnas entre as duas
facções, armadas com pedaços de paus e tijolos e até com o uso de bodoques
municiados com cascos de telhas de barro.
A Pracinha era também o
palco de combates entre os de menor idade, geralmente fomentadas pelos mais
velhos, que formavam roda para se divertirem, aplaudindo os vencedores e
gozando com os perdedores. Qualquer motivo, por mais banal que fosse, era
motivo de brigas. Bastava que um dos guris dissesse para o outro, “escuta, tchê, aquele fulano está dizendo
que não tem medo de ti e que tu tem cara de abobado.” Pronto! Já estava
formada a peleia, que durava até que alguém apartasse ou que algum dos
contendores desistisse da luta, pois todos faziam parte da turma da Pracinha e
a maioria das famílias eram unidas por laços de parentesco e amizade.
Também tomei parte em várias
brigas e embora fosse de compleição meio franzina, era respeitado entre a
gurizada.
Naquele tempo a maioria das
casas possuíam grandes quintais com árvores frutíferas das mais variadas
espécies. Os moradores eram italianos ou descendentes dos mesmos. Esses pomares
eram por nós visitados furtivamente à noite e de lá saíamos com os bolsos
carregados com frutas da estação, comidas logo na primeira esquina deserta, bem
distante da casa cujo quintal fora assaltado. Na época não considerávamos isso
como roubo, tendo como ponto de honra não estragar as árvores e não apanhar
frutas ainda não amadurecidas.
Frequentei o Colégio
Elementar de Santa Vitória do Palmar, que era um educandário estadual da
cidade, distante umas quinze quadras da Pracinha. No inverno era um sacrifício
irmos diariamente às aulas, pois caminhávamos quebrando gelo das tremendas
geadas que se acumulavam no gramado da Praça General Andréa, a qual éramos
obrigados a atravessar para chegarmos ao colégio.
Guardo boas recordações
daquele Colégio Elementar, como era conhecido em toda a cidade.
O diretor era o professor
Tancredo Blota, ex-padre jesuíta, homem de grande saber, extremamente bondoso e
correto.
Das professoras, recordo-me
da senhoria Dalva Dupuy, ótima mestra; da professora Rosa, muito enérgica, não
admitia conversas nem brincadeiras durante as aulas, mas atuava com grande
eficiência. A professora Darci Venturine, bondosa e também muito eficiente.
Quanto a mim, nunca fui um aluno brilhante, de passar o dia estudando, porém,
nunca rodei de ano e ficava entre os primeiros lugares.
O curso primário ia até a
oitava série, mas eu fiquei no colégio até a sétima série, porque tinha que me
preparar para ingressar no Ginásio Gonzaga, na cidade de Pelotas. Para tal era
necessário ser aprovado num exame de admissão que era um verdadeiro vestibular.
A família decidiu que eu e
meu irmão Antônio, que era mais velho dois anos do que eu estudássemos com uma
professora particular, para esse exame.
A indicada foi a professora
Zezeca, que morava na casa da Tia Ondina. Também a chamávamos de tia. Estudamos
com afinco e fomos para Pelotas. O exame foi um sucesso. Fomos aprovados com
distinção entre mais de duzentos candidatos. O Antônio ficou em primeiro lugar
e eu em segundo.
Tinha eu quatorze anos de
idade e o Antônio dezesseis. Fizemos a matrícula no primeiro ano do curso
Propedêutico do Ginásio Gonzaga. O Antônio ficou no internato e eu fui morar na
casa dos tios Pedro e Amélia, na Rua Andrade Neves, 516, em Pelotas. Lá fiquei
morando um ano. No segundo, fui também para o internato.
Concluído o Curso
Propedêutico, ingressamos na Faculdade de Economia de Pelotas, para fazermos o
curso de Contador, que funcionava à noite. Isso nos obrigou a deixar o
internato e irmos para uma pensão.
Antes de contar sobre a vida
em Pelotas, onde vivemos por seis anos, até 1942, preciso falar sobre como foi
a nossa viagem para aquela cidade.
O nosso município não
possuía ligação por rodovia transitável para ir-se até os municípios vizinhos,
tendo os veículos que usar como rodovia a costa do Oceano Atlântico no trajeto
entre os balneários Barra do Chuí e do Cassino, numa distância de duzentos e
vinte quilômetros.
Era uma via muito boa,
quando o mar estava calmo, porém quando os ventos do sul e do sudeste comeavam
a soprar as ondas se agigantavam e avançavam sobre a faixa de areia litorânea,
tornando-a intransitável.
Quando isso acontecia, a viagem
tinha que ser interrompida e os veículos estacionados sobre a faixa de areia,
fora do alcance das ondas, ficando ali até que o vento amainasse e a costa se
tornasse novamente transitável, o que não raras vezes demorava horas e até
dias. Por isso os viajantes se precaviam levando consigo um bom farnel e
agasalhos.
Outro fenômeno da natureza
que também provocava a maré enchente era a hora da saída da lua. Então a praia
se tornava intransitável para veículos a motor.
O proprietário da linha de
ônibus de Santa Vitória a Rio Grande era o seu José Benito de los Santos,
uruguaio radicado em Santa Vitória do Palmar a muitos anos, grande parte dos
quais dirigindo seus ônibus pela margem do Atlântico até o Rio Grande e
vice-versa, de modo que era conhecedor por experiências próprias de todas as
facetas daquelas viagens, sabendo a hora em que devia parar o veículo e a hora
em que devia seguir viagem.
De los Santos era um homem
cavalheiresco. Tratava a todos com lhaneza, mas também se fazia respeitar
quando era necessário, dirigindo o seu veículo naquela praia imensa e deserta
tal como se fora o comandante de uma nave marítima, com toda a maestria e cuidado.
Não existia então Estação Rodoviária
e os ônibus iam apanhar os passageiros em suas residências, acarretando grande
dificuldade ao tráfico, pois as ruas não eram calçadas e quando chovia,
tornavam-se um grande atoleiro. Aquela via pela margem do Oceanos durou até que
foi construída a estrada pelo interior do município, o que levou vários anos.
Em nossa primeira viagem
aconteceu algo pitoresco que a bem da verdade devo relatar. Nós nunca havíamos saído
de Santa Vitória para lugar nenhum. O trajeto entre o Rio Grande e Pelotas era
feito por via férrea. Não havia ainda estrada de rodagem.
Os passageiros que se
destinavam a Pelotas, como nós, eram desembarcados na Estação-Junção,
aguardando a passagem do Trem.
Estávamos sentados diante da
Estação, com a nossa bagagem, quando, de repente, se ouviu o que nos pareceu o
berro de um animal selvagem, tão forte e estridente ressonou. Era o apito do
Trem que chegava. Foi um tremendo susto e me preparei para fugir. O Antônio
teve que me segurar.
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Hoje, 22 de Novembro de
2012, o meu pai, Carlos Rotta Rodrigues,
dono destas bem traçadas linhas, estaria completando 89 anos de idade, se ainda
estivesse vivo. Ele desencarnou no ano de 2007, com 85 anos de idade. Era um
mergulhão apaixonadíssimo pela sua terra natal.
Esta “Pasta” estará sujeita a alterações, inclusões, revisões, etc.,
pois é bem possível que eu descubra mais escritos dele, perdidos na papelada.
6 comentários:
Um belo monumento literário de remembranças nossas! Maravilha, Zé Vitor!
Uma maravilhosa viagem literária. Belas remembraças.
E o Mario Donato era um figuraço. Maravilha de pessoa. Vi agora que era do "primeiro quadro"! Aqui temos registros bem importantes, como pudeste perceber. Vou garimpar mais os alfarrábios. Talvez se encontre algo mais. Grande abraço!
Comentário do Luis Fernando Azambuja, que recebi por e-mail:
Que coisa mais linda!!! Peço para fazeres remessas da “Pasta 10” ao nosso NPHC, pois falei ao João Máximo sobre o escrito do Rotta, nome pelo qual ele era conhecido aqui em Camaquã (nucleodepesquisashistoricas@yahoo.com.br). Tudo que é história nos interessa. Conversamos sobre as cidades fronteiriças Brasil-Uruguay, e seria interessante mais dados sobre a influência de Montevideo na cultura daquela nossa região. Sabemos que tudo se devia a falta de estradas ligando à Porto Alegre, pois Camaquã também estava “ilhada” de Porto Alegre e Pelotas, devido a grande quantidade de rios, e por serem caudalosos e sem pontes. Por tal Camaquã nunca produziu filhos ilustres, culturalmente.
Valeu Primo.
Beijo e abençoo o coração de vocês.
LFernando
Sobre a foto: meu pai, Carlos, no comando do barco; Domingos Petruzzi Filho (Minguito) e sua esposa Ilma Rodrigues Petruzzi; e Raquel Cava, possivelmente.
Me parecia que era o seu Minguita e a Profª Ilma. Teu pai nem a d. Raquel reconheci. Abração.
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