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PASTA 9 - TEMPOS DE ESCURIDÃO


João Felipe viu duas vezes o filme LULA – O FILHO DO BRASIL e foi taxativo: “— penso que deveria ser matéria obrigatória nas escolas brasileiras. É aula de civismo! O filme ajuda a redescobrir essa complexa formação do Brasil. A cena do filme da vida do Lula no estádio de futebol paulista, sem aparelhagem de som e completamente cercados pela polícia da ditadura... e logo após a prisão do Lula... detonaram as minhas lembranças, de toda aquela época terrível. Nós, os estudantes, fazíamos então todo o esforço possível para viabilizar a anistia.”
João Felipe não conseguiu dormir na noite em que viu o filme. Vinham-lhe à lembrança todas essas coisas, a começar pela prisão do Frank, em Porto Alegre.
Jamais lhe passara pela cabeça que o Frank estivesse envolvido com os grupos da luta armada. Ele era o irmão mais velho de dois amigos com os quais muito convivia. Na verdade, o Frank era um camarada distantes da turma toda, pensava João. Aliás, turma absolutamente imantada na Bossa Nova emergente e na Jovem Guarda.
O Frank - soube depois - estava entre os sequestradores do embaixador americano e seria (era) membro da VPR - Vanguarda Popular Revolucionária (*). Que escândalo! E que drama! Que loucura foi tudo aquilo!
Para João, marcara o início da temporada da escuridão e do medo. Nunca deixou de frequentar os dois irmãos do Frank, embora eles fossem constantemente seguidos pelos agentes do DOPS, tivessem sua casa invadida, com violência e desrespeito, à sua mãe viúva e a uma de suas irmãs, grávida de quase nove meses.
Submetido à tortura, o Frank tentou o suicídio. Familiares mais velhos de João, inclusive seu pai, mobilizaram-se para dar um jeito de suavizar as coisas para o Frank, acionando amizades institucionais possíveis. E sem dúvida ajudaram, pois logo depois disso aconteceu a transferência dele para um presídio comum, longe da mão dos torturadores.
Pegou sete anos. João queria falar com o Frank de qualquer maneira, mas toda uma barreira familiar aconselhava-o a deixar para lá, dar um tempo era o melhor, diziam.
Muitíssimas coisas aconteceram depois desse tempo, até que um dia, inesperadamente, dia glorioso de muito sol na Ilha de Santa Catarina, aliás, em 1979, João Felipe caminhava pela Vidal Ramos quando deu com o Frank vindo do lado contrário, boa pinta, aquele guerreiro teimoso e obstinado, o Frank.
“— És tu mesmo, cara”? Era! Riram, abraçaram-se, ambos estavam trabalhando! O Frank estava feliz! E sem marcas aparentes das torturas. A vida era maravilhosa!! Trocaram cartões, endereços, telefones, mas nunca mais se viram. Esse cara de boas maneiras não queria comprometer mais ninguém, possivelmente.
Pouco antes, ou pouco depois disso, João vira os Generais deixando o poder. Vira o povo de Florianópolis colocar o General Figueiredo em maus lençóis, na Praça XV de Novembro, e no Palácio Cruz e Souza. Viu muitas, muitas coisas nesta vida que anda rápida demais para seu gosto, como gosta de dizer, inclusive muitíssimos operários de fábricas catarinenses com dedos e mãos decepadas por máquinas, tornos e prensas que não possuíam os devidos equipamentos de segurança, tal qual o dedo decepado do Presidente Operário Brasileiro.
A atuação da atriz Glória Pires, como mãe do Presidente Lula, que coisa mais tocante! As mulheres brasileiras... a atriz e a mãe, a verdadeira, que duas personalidades fortes! O Brasil, sem dúvida, sua história, seu processo de formação especialíssima, com seus efeitos na miscigenação e no emocional do povo, era o maior dos detonadores emotivos de João Felipe.
E ele lembrava também que tinha chorado em Porto Alegre: "— pois é cara, sou mesmo um chorão, me debulhei em lágrimas ao entrar naquela urna, numa esquina da Demétrio Ribeiro, para votar após quase trinta anos daquela ditadura infernal, daqueles tempos sombrios, oscos, proibidos de exercer esse direito básico de cidadão. E chorei também ao eleger o Lula e depois, chorei ao eleger a Dilma Presidente, por ser mulher, por ser guerreira, corajosa, por ter sido torturada por aquela insana e terrível repressão que se abateu sobre o Brasil a partir de sessenta e oito”.
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(*) A Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) foi uma organização de luta armada brasileira de extrema esquerda que lutou contra o regime militar de 1964 no Brasil, visando à instauração de um governo de cunho socialista no país. Formou-se em 1966 a partir da união dos dissidentes da organização Política Operária (POLOP) com militares remanescentes do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR).

PASTA 8 - O MESTRE


Os colégios dele foram os possíveis. O Colégio São Carlos, das freiras, onde se sentia em segurança e a partir do primeiro ano primário, possivelmente por questões de economia familiar, a famigerada “escola pública”; o convívio com a plebe ignara. No caso, o amedrontador e distante Grupo Escolar Manoel Vicente do Amaral.

O medo de enfrentar-se com os valentões da escola pública não era pouco. As intermináveis e diárias brigas de rua em sua zona já eram bem difíceis; deixava-o ressabiado e meio acovardado. Enfim, tinha que enfrentar, era o jeito, nem que fosse desviando uma que outra rua, estrategicamente.

Os anos da escola primária passaram-se muito rapidamente. Mas não foram mais importantes do que as férias nas fazendas dos primos e amigos e muito menos do que as fantásticas vacaciones na Barra do Chuí.

E então chegara o tempo de vestir a farda, o uniforme do Ginásio Estadual de Santa Vitória do Palmar. Era uma farda efetivamente militar, com galões no ombro que indicavam, assim como os galões de cabo e sargento, o ano que se estava cursando – do primeiro ginasial (um galão – um risco em V deitado apontando para fora) até o quarto (quatro riscos, em azul marinho e branco).

O primeiro ano do Ginásio equivalia a sexta série, pois eram cinco anos de primário e depois mais quatro anos de ginásio, para seguir então com o curso científico, ou clássico, ou uma escola técnica. A partir daí, vinham então os cursos superiores – as faculdades.

Para ingressar no ginásio - 6º série - era preciso fazer uma espécie de vestibular – o exame de admissão. Ele passou, a duras penas, de baixo de muita briga e muita teima da mãe e da “cinta” do pai, além de uma infinidade de professores particulares e castigos. E por quê? Simplesmente porque para ele nada podia ser tão ou mais importante do que jogar futebol – que jogava mal, lutar com espadas – que jogava bem, andar a cavalo e depois de bicicleta, lubrificar as armas e caçar.

Boa parte dos professores do Ginásio eram bons, sem dúvida, mas aí chegou a sua sorte.  Aportava no Ginásio um professor diferente, com fala diferente, abordagem nova, um jeito de tratar e se relacionar com os alunos fora do convencional. Retornava para Santa Vitória, com o propósito de lecionar geografia - o professor Homero. Fechava-se um circuito. Homero era a peça que faltava para despertá-lo e certamente a outros.

De repente um clique aconteceu e que o fez enxergar, entre outras coisas, a enorme biblioteca que seu próprio pai tinha na sala de visitas.

Começou por devorá-la. Tinha 13 anos. Estava atrasado!