Páginas

PASTA 3 - DIÁLOGOS

Carlos é radical nas suas conclusões. Isso se expressa até nas suas roupas e atitudes. Ele não descobriu ainda o mecanismo harmonioso governado por Leis Maiores. Até compreende e aceita, mas a verdade é que ele ainda não sentiu a naturalidade da lei das vidas sucessivas e quando se põe a analisar o mundo do ponto de vista de uma existência apenas, os grandes enganos passam a ser uma constante, acaba-se até por nem acreditar em Deus. Sei que isso é um estágio natural para todo ser humano, mas me preocupa muito. As atitudes do Carlos podem conduzi-lo a um beco sem saída. É meu filho, porra!


Final de tarde de um dia quentíssimo na Ilha, no bar Os Apóstolos. O suor misturava-se à oleosidade da pele após um dia de árduo trabalho. Uma rodada de cerveja. Os amigos conversam.

— Eu acho que tu te preocupas demais, Luiz Fernando, comenta Ricardo.

— Não Ricardo, a vida tem me ensinado muitas coisas e eu vejo as ligações com muita preocupação. Ele não consegue me esconder coisa alguma, nem as que faz mais escondido. Essa sua viagem ao Peru é perigosíssima. Nada a ver com preconceito a mochileiros ou algo parecido. São as companhias que me preocupam. Queres saber a verdade? Pois bem, fazer um curso de guerrilha urbana ou rural não é tão difícil assim.

Basta você ser um obtuso radical e as aproximações das mentes sintonizadas nas soluções radicais, pelas armas, logo te encontram. A juventude sempre foi e é massa de manobra, da esquerda ou da direita, principalmente porque a maioria dos jovens acha que sabem tudo. Não te lembras? E o pior é que essa atual raça de guerrilheiros latinos perderam até o senso de dignidade política, quero dizer, dos ideais, você entende? Não tem mais essa coisa dum Bento Gonçalves da Silva por detrás do fio do bigode, dum ideal à la Bolívar.  Acho que esses ideais morreram definitivamente com Guevara. Guevara foi o último, a fronteira. Até o El Rei Fidel já se deu conta disso, mas imagina se o Carlos e a turma dele têm condições, hoje, de avaliar essas complicações.

Sim, mas o que queres dizer com isso? Qual a diferença que vês nessas atitudes de guerrilheiros modernos com antigos? Guerrilha é uma coisa técnica, é uma guerra intestina, é a velha luta pelo poder, ou mudou? Vou te dar uma só diferença, mas tão marcante que vais perceber o resto. Não mais é possível entender o mundo, bem, o mundo da política, da sociologia, da economia, dos sistemas, sem introduzir uma variável que se impôs completamente no decorrer do século XX: o crime organizado. Não se chegará jamais a conclusões razoáveis, a prognósticos bons, analisando as coisas unicamente na tradicional esquerda e direita. Acontece que no mundo organizado importante de hoje há esse poder fantástico das organizações criminosas, encarregadas do tráfico de drogas e de armamentos bélicos, que assumem posições de esquerda ou direita de acordo com as suas conveniências, seus interesses.

É, eu penso que tens razão. Esse é um fator que complica a análise, tanto de conjuntura como no longo prazo. Eu, francamente, tenho dificuldade de fazer previsões para o Brasil ou para a América Latina. Falo, discuto, mas no fundo eu não tenho nenhuma segurança. O que vai acontecer? Sei lá! O futuro a Deus pertence! Olha bem, Ricardo, nós estamos tentando consolidar um processo democrático, após trinta anos de ditadura da direita. Na medida em que se fortalece a democracia, pelo crescimento das forças populares que se organizam a quem o sistema mais incomoda? Aos empresários? Não! Ao capital! Isso mesmo! Então, veja bem, ficam ameaçados, hoje, o empresariado corrupto, que tem tido um poder enorme no país, caça-se PC Farias e seus amigos. Pressiona-se Fernando Collor e a república das alagoas. Na medida em que a sujeira mais aparece, respinga cada vez mais aonde? Claro que entre os empresários, políticos, figurões e quem sabe até em alguns militares aliados à corrupção, aboletados há décadas no poder. Vou te dizer uma coisa, quando eles se sentirem demasiadamente pressionados vão dar tiro pra todo lado, vão querer a volta da ditadura. Aliás, à boca pequena, na base dos fuxicos, isso é o que mais se comenta por aí. Por enquanto isso não é nada sério, mas com o tempo!

Pois é, diz que o Sarney quer ser o Fujimori brasileiro...

— O homem tá se oferecendo? Bem, isso daí é mais complicado ainda. Acho que sem algum tipo de endurecimento não haverá jamais saída para nós. O congresso derrubou o Collor, fez um gol, mas meio por acaso. Não teria pressentido que o Collor estava articulando o golpe civil para fechar o congresso? Não te espanta! Isso é seríssimo, cara, mas acho que vai ser uma análise para outro dia.

Deputados e Senadores, em sua esmagadora maioria, defendem os poderosos, quando não a própria corrupção, ou mesmo o crime organizado. E então? É isso aí, cara, é a minha tese! Pelo congresso, dificilmente haverá saída.  Meu Deus estou delirando! Estou a um passo da direita! Friamente é isso mesmo. Alie-se a inoperância do legislativo à ineficácia histórica do judiciário, some-se a isso um Estado falido, que é uma grande ferida aberta no sistema, pelo menos uma grande parte do executivo, na verdade a maior parte, que não funciona mesmo e tem-se a explicação porque o Fujimori fechou o congresso.

Seja direita ou esquerda, num primeiro momento político após qualquer ato revolucionário existirá sempre um golpe. Se o sistema é democrático, ou plutocrático, como o nosso, o golpe será no legislativo. Acontece que no começo tudo são flores, golpes tem sempre um grande apoio popular. Só que depois degringola, ou não é verdade? O caso do Fujimori é um exemplo incrível aonde esse fator do crime organizado dá bem a medida da complicação. O Sendero Luminoso é uma direita travestida de esquerda. Tu achas que o Fujimori poderia combater o crime organizado tendo nas mãos unicamente a estrutura do Estado democrático? Nunca!! Eu nem quero defender o cara, só estou tentando entender. O problema é que isso tudo é um perigo. Por enquanto esta até dando certo, os militares estão entrosados, dando corda no japonês, mas até quando?


E nós? Teremos um Fujimori, um general ou um Miterrand latino? Sei lá! Esses dias eu refleti a reforma agrária japonesa com um japonês que viveu tudo enquanto ela se fazia. Tu não imaginas como foi bom reestudar a coisa fora daquilo que pesquisamos nos livros acadêmicos. Apesar da guerra e da bomba atômica terem essa conotação imediata e bombástica do negativo, ele, depois de anos e anos de vida e reflexão, agora com 63 anos de idade, pensou comigo os aspectos positivos desse absurdo, que também teve. Segundo ele há que se reconhecer isso e um deles, sem dúvida, foi a reforma agrária implantada por Mac Cartey, e aí começamos a pensar a coisa nesse particular de ter sido um cara de fora a fazer o necessário, tás compreendendo? Não tem nada mais, só isso aí. Fiquei pensando muitíssimo nessa particularidade. Aliás, estou pensando até agora e acho que esse mestre falou uma coisa demasiadamente séria.


Se os estudos antropológicos do Darcy Ribeiro estiverem corretos, como eu penso que sim, os países de grande risco para revoluções intestinas são a Bolívia, o Equador, o Peru e a Venezuela, e penso que o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Chile, felizmente distanciam-se cada vez mais dessa possibilidade.

E é justamente para o Peru que o Carlos vai, não é mesmo? Aí residem as tuas preocupações, mas quem sabe tudo isso não passe de cismas tuas?

Não, não são cismas. Não digo que não exista saída para o Carlos, mas hoje vejo a coisa preta. Ele anda envolvidíssimo com um pessoal de história de clandestinidade, gente que usa a garotada mesmo, que pega a garotada na boca das universidades e faz a cabeça da turma. A minha única esperança é que o Carlos tenha adquirido suficiente formação no seio da família. Os caras o estão levando, fisgando, cutucando os seus bons ideais. Como somente esses bons ideais não bastam ainda para entender a complexidade dessa coisa toda que é a vida, os sistemas, a sociologia, os caras vão se aproveitando. Na verdade o Carlos é também um tipo violento. Ainda tem um pé troglodita muito forte. Isso há que se considerar.


Ele é teu único filho, é isso aí, filho único é fogo! Ainda mais que teu casamento que não deu certo, quase não tens podido viver perto dele. Não esquenta não, tudo vai dar muito certo, precisas confiar mais nas forças do astral superior, que são fortes, poderosas, tem coisas que são do carma duma pessoa, se ele tem que vivenciar aquilo, não vai ter jeito não.

Vamos ver. Semana que vem ele parte, rumo ao foco dos problemas latinos. A última Veja tem uma entrevista com o Fujimori. O japonês é tão ardiloso que quase me convence da "excelência da ditadura civil". Que Deus proteja o Carlos. Eu vou rezar muito por ele. E o Mariano, tens visto a peça?

— Não, ainda bem. Deus que me perdoe, mas eu tenho até dificuldade de conversar muito com ele. Continua o mesmo pão-duro de sempre, explorador, não compra um jornal e não bota a mão no bolso nem pra pagar uma coca-cola.

É o Mariano mesmo!

Uma risada que vai se transformando em uma boa gargalhada envolve os amigos.

Faz uns dois dias fui visitar o Marcão. Deve ser a décima quinta internação, sempre o mesmo e sempre a mesma coisa! Tu já conheces o filme. Desta vez está no pavilhão dos alcoólatras do Caridade. Se os caras descobrem que ele, além de álcool, puxa fumo e cheira coca, nas horas vagas, expulsam-no de lá. É pavilhão especializado. São cegos ainda, não admitem multi-drogados. É triste ver o Marcão enclausurado naquela fortaleza de orgulho em que se transformou, matando-se dessa maneira brutal.

Nenhum comentário: