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PASTA 4 – SANTA CATARINA

Garopaba continua o paraíso do surf, também, olha só esse marzão, não é possível viver muito tempo longe da Praia da Silveira, do Siriú, muitas vezes eu penso nisso que falaste agora, mas a minha história é outra. Se eu começar a te contar histórias do meu tempo, nós não falaremos as coisas que temos que falar.
 Pois bem, eu não conhecia o Maurício, não sabia nada da relação dele com o Érico e nem que era o grande editor do Rio Grande do Sul. Não sabia nem que ele tinha sido o fundador da feira do livro de Porto Alegre, ou melhor, acho que isso eu sabia. E a casa do Maurício era badaladíssima, concorridíssima, por escritores e intelectuais de várias épocas. Todos queriam bater papo com ele, e aparecer. Nessa época, pelo menos, eu não queria saber de charme nenhum. Rapidamente entendi a situação e aproveitei a cabeça e a experiência dele para por a minha mais em ordem, pois que decididamente não estava!
Monopolizei o Maurício uma noite inteira. A primeira noite - acho que foram duas noites - questionei-o muitíssimo, nas entrelinhas, sem abrir demais as coisas Era 1972, compreendes? A ditadura imperava! Na verdade foi uma ajuda providencial, definidora de rumos. Eu estava de cabeça feita, totalmente cego e ensandecido. Os grupos de esquerda clandestinos tinham uma técnica de manipulação de cabeças muito eficiente e o maior aliado deles era o próprio sistema imbecil que dominava o país. A direita brasileira era obtusa e feroz e nos jogava naturalmente para os braços do radicalismo cotidiano e tinha também todo o romantismo de maio de 68, ainda fresquinho em todos nós.
O Mauricio me ajudou a travar definitivamente as armas da destruição. Falou-me do mundo, da vida, e, sobretudo dos judeus. Isso foi fundamental, era experiência atávica, dele. Essa trajetória de uma raça sofrida, deu-me uma ideia sobre um novo caminho. Isso me salvou
 A cento e vinte quilômetros por hora, o carro varava a noite fechada de um outono típico da região sul. Nem frio nem calor. Os eventuais arrepios eram por conta da janela aberta além da medida cautelar, ou quem sabe, simplesmente por causa do negror da noite.
Você não está dormindo, não?
Faz muito tempo, num dia fatídico, ridículo da minha vida, a verdade é que eu quase me tornei um assassino. Bem, eu poderia ter me tornado um assassino, bastaria uns copos de cerveja a mais. Havia um deputado, em Porto Alegre, que no auge da ditadura, era a caricatura mais grotesca que se possa imaginar, do civil filho da puta, entreguista, safado, medonho. Via comunistas até debaixo da cama. Para ele, todos os que discordavam de suas idéias políticas e do regime militar, eram comunas, guerrilheiros, bandidos. Era um fascista! Tinha as rádios e as TV’s em suas mãos e torturava a juventude estudantil com seus discursos cretinos.
Juntou-se, num determinado momento cósmico, numa rodada de cerveja e mais uns três ou quatro comprimidos de dexamil - que era uma das drogas da moda, um “ligante” ridículo, que nos deixava mais angustiados ainda - o fato é que eu queria me mostrar para aquela mulher, uma menina por quem eu estava apaixonado. Todos nós queríamos que o filho da puta daquele deputado morresse meio mundo queria, e eu, valentão, logicamente na frente dela, disse que faria o serviço. Eu mato! E matava mesmo, duvidas? Graças a Deus a turma votou contra. Acho que mataria. Não sei te explicar exatamente porque, mas mataria...
Aliás, não vou escrever mais nenhum livro, nenhuma pesquisa! Dou por escrito o meu livro sobre o Fernando Ferrari. Como diz o Maldaner sobre os discurso grandes que lhe dão para ler: Dou por lido!
Tu viste o filme JFK? Brilhante! Imagina o que eu teria a dizer sobre um assunto meio igual? O que poderia eu, pobre habitante de um pais subdesenvolvido em continente pobre, apresentar de novo, ou mesmo razoável, frente ao poder da riqueza dos irmãos do norte? É, e também da inteligência deles. Realmente são muito inteligentes! Não dá pra competir! Eu passo a maior parte da minha vida lutando pela grana da sobrevivência, do mínimo, pagar aluguel, essas coisas, roupas, imagina! De onde tempo e dinheiro para financiar pesquisas, estudos, análise de documentos, entrevistas, viagens.
Silêncio.
A minha mente prática te chateia?
Tu vais pra Santa Maria, conheces os descendentes do cara, eles te dão documentos, relembram fatos, histórias, tu pegas as mais promissoras e vais fundo, juntas com os teus recortes de jornais, encontras alguns ex-delegados de polícia, inspetores aposentados, perguntas, anotas e descobres aquilo que já sabemos: explodiram o avião do homem, como o do Marcos Freire, dizem que até o do Ulisses Guimarães. Fim. Aí está toda a história. Talvez se conseguires alguns detalhes mais pitorescos possas servir para uma daquelas reportagens da Veja ou da Isto É e eu te pergunto: E daí? O que adiantará praticamente tudo isso, se vivemos no país da impunidade. Ah, temos que acrescentar que uma das razões de tanta impunidade é que também não se consegue descobrir nada, os “culpados”, pois os culpados são sempre algo meio complicado de especificar, são eles, mas eles quem? O sistema? O sempre vago sistema e nunca se passa disso e quando se passa, e chega-se a apontar culpados, com provas e tudo, também não acontece nada. É o  Brasil, cara! É o Brasil!
Na verdade eu não faria nunca toda essa caminhada investigatória. Primeiro porque não sou detetive. Segundo porque não tenho tempo e nem dinheiro para ficar furungando a história ou toda essa coisa. No fundo eu tou só fazendo onda, uma onda comigo mesmo, entendes? Sei lá! Pra não cair a peteca, quem sabe. Eu sei que existe uma necessidade profunda de Reforma Agrária neste país. Estes tempos de democracia são tão impressionantemente diferentes do tempo da ditadura! Os inimigos do povo ficam muito mais camuflados, tão escondidos que a gente vai esquecendo dessa guerra que é uma realidade. Eu não quero esquecer! Digo-te com sinceridade que não é nenhum sentimento de vingança ou desforra pelos tempos negros, mas é porque não acredito nessa paz. Acho que o perigo de um retorno ainda é muito forte é coisa real, eu sei! E não é paranóia. Quando eu faço essas minhas pesquisazinhas, parece então que me coloco um pouco mais na verdade dessa guerra que não esta aparecendo tão bem, hoje em dia.

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