Uma das primeiras coisas que fez ao chegar a Porto Alegre foi pedir ao
pai que lhe pagasse um cursinho para ingressar na EPECAR – Escola Preparatória
de Cadetes do Ar - em Barbacena, Minas Gerais.
Seu pai relutou, mas acabou concordando, e costumava comentar: “se tu passares nesse exame, eu vou pastar
de quatro na Praça da Redenção!” - tanto por perceber o traste de
adolescente problemático que o filho era como também por saber o quanto era
difícil a aprovação nesse exame de admissão.
Pois para surpresa geral o menino que já se sentia homem feito, passou
na prova. Diga-se também que a surpresa maior foi para o próprio.
No início dos anos sessenta as condições de comunicações e
transportes, no Brasil, eram precárias. Ele estava passando as férias de verão
na Barra do Chuí, em Santa Vitória do Palmar. Como não acreditava na possibilidade
de aprovação, nem se preocupou em verificar o resultado pelos jornais. Quem viu
isso foi um tio que residia em Porto Alegre. O tio então passou “um rádio” (mensagem por radioamador)
avisando do milagre – foi aquele auê!
O personagem estava mergulhado em sua boemia precoce, de bailes,
namoros e serestas, pela bucólica Barra do Chuí, mas assumiu esse momento de
glória e disse - “eu vou!” - e foi!
Barra, Porto Alegre, Base Aérea de Canoas e Base Aérea de Cumbica, em
São Paulo. Muitos e muitos novos exames, físicos e psicotécnicos.
Houve um impasse ao se descobrir que ele era daltônico, embora em
pequeno grau. Tempos depois, ao ser reprovado nesses últimos exames, sem que
jamais o Ministério da Guerra dissesse o porquê (eles só respondiam que era
sigilo, mesmo com a interferência do piloto de caça, então quase Brigadeiro do
Ar), essa questão do daltonismo ficou como sendo a causa da débâcle.
Anos se passaram, ele foi amadurecendo, inclusive em sua autoanálise,
até concluir, sem medo de errar, que não foi o daltonismo a causa da sua recusa
pela FAB. Quem o reprovou foi o médico psiquiatra. Para o médico, o
adolescente não apresentava um equilíbrio emocional, e quem sabe até, traços de
caráter que garantissem o seu sucesso nesse empreitada radical – a de ser
testado em seus limites humanos para se tornar oficial-piloto. O médico não
quis assinar embaixo.
A dedução não seria tão difícil assim, para um adulto. Por isso ele
precisou que alguns anos se passassem para chegar a essa conclusão.
Aconteceram duas entrevistas com o psiquiatra. Os outros alunos
tiveram uma só. Relata-se a segunda: O psiquiatra disse que o chamara de novo
para que contasse mais uma vez o caso do tiro no braço, cujo ferimento recente
era impossível de esconder. Ele, ingenuamente, contou a mesma absurda e
ridícula mentira que havia contado para a polícia de Santa Vitória do Palmar.
Claro que o eminente policial de Santa Vitória que diligenciou o causo, também não teria acreditado
naquilo que os meninos de quatorze anos combinaram de relatar, mas, por sua
experiência e sensibilidade, amizade aos pais, etc, certamente aceitou as
precárias e improváveis explicações – e deu por encerrado o processo.
Mas o psiquiatra da FAB, que não tinha parte nem arte com essa turma,
não engoliu a história e sentiu o problema.
Na verdade não houve nada de horrível no caso, mas como já foi dito,
os tempos eram outros no interior do Brasil e na fronteira gaúcha lá pela
metade dos anos sessenta.
A meninada gostava de portar armas – imitando os adultos. Uma das
brincadeiras preferidas era atirar e caçar. Ele tinha ótima pontaria e se
orgulhava disso. As caixas e caixas de balas, calibres 22, 32 e 38 podiam ser
adquiridas, sem nenhum tipo de controle, no armazém da esquina, tanto quanto
cigarros e bebidas alcoólicas – era coisa de homens! E também de uma sociedade
deveras atrasada.
O incidente, ou acidente do tiro no braço foi mesmo sem intenções,
acidental mesmo, apesar das fofocas e conversas que diziam o contrário. Um
engano e uma falha de comunicação e no respeito ao código que a garotada tinha,
com relação ao porte de suas armas – não apontar e não disparar jamais, nem de
brincadeira, uma arma um para o outro.
A história, inventada e tramada por ele e sua turma foi para não ter
que entregar para a polícia a arma que efetivamente disparou o tiro – um lindo
revólver Rossi, calibre 22 – pois era uma relíquia que tinha adquirido
justamente naquele dia! Verdadeiramente, não adquiriu, mas trocou pela sua
escopeta, também calibre 22, com um dos garotos, justamente o que desferiu o
tiro.
Essas coisas que não dá pra explicar. Fizeram a troca, no quarto. Ao
darem por concluído o negócio, o dono do revólver entregou-lhe a arma, e pegou
a escopeta, mas por sovina, talvez, retirou as balas. No momento seguinte, foi
ao banheiro. E ele, o novo dono do pequeno revólver, puxou uma de suas caixas
de balas e recarregou, sem que o ex-dono visse o gesto, pois estava já no
banheiro.
Negócio concluído, ele recosta-se na cama, deixando a nova arma
(novamente carregada) na mesa de cabeceira.
Certamente um espírito diabólico aproveitou-se do momento. Ao sair do
banheiro, o ex-proprietário, rindo, brincando, sem dar tempo de nada, caminha
em direção a sua ex-arma – que evidentemente pensava estar descarregada –
pega-a e detona o tiro, apontado sem pudor bem perto do coração dele. O despudor
aqui vai por conta do desrespeito descarado ao código da meninada, que por
incrível que pareça, com exceção deste episódio, sempre funcionara.
Isso deu pano pra muita manga, na cidade toda.
E ele? Bem, com esse imbróglio
todo, ficou mesmo com o revólver calibre 22, niquelado novo, seis balas no
tambor, que manteve escondido por um bom tempo, até que a poeira toda baixasse,
mas... perdeu, possivelmente, a oportunidade de ser um bravo e heroico piloto
de caça da Força Aérea Brasileira. Como iria saber?
Nenhum comentário:
Postar um comentário