Arquivo Permanente é o nome moderno que se dá ao velho ARQUIVO MORTO. Pois então, isto aqui é mesmo uma espécie de Arquivo Morto. Florianópolis, Ilha de Santa Catarina.
PASTA 10 – DE PAI PARA FILHO
CURRAL
GRANDE
Quando meu pai faleceu,
minha mãe arrendou o nosso campo para o Senhor Antônio Bermudes e foi morar na
cidade.
... distante mais ou menos
cinquenta ou sessenta metros do corpo da casa situava-se o galpão crioulo,
usado para encilhar os cavalos nos dias de chuva. Era uma construção rústica,
de adobe, coberta de Santa Fé, com as dimensões de aproximadamente duzentos
metros quadrados.
Nesse galpão o fogo de chão
era mantido aceso quase todo o dia. Uma chaleira de ferro fumegava suavemente
pronta para quem quisesse tomar um chimarrão. A casa ficava situada na parte da
frente do terreno, fechando a porteira de um capão-de-mato de eucalipto
plantados em forma de U, distante das construções mais ou menos cem metros; e
no fundo do campo o limite da propriedade era demarcado pela Lagoa Mangueira,
precedida por toda a margem Leste por um banhado de palha de trezentos metros
de largura, que deveria ser atravessado para chegar-se a praia de areia à beira
da lagoa, cujas águas límpidas proporcionavam um magnífico banho.
A travessia do passo para
chegar-se à lagoa era feita a cavalo ou nadando como várias vezes fazia, quando
ia lá para tomar banho solito, cavalgando uma petiça zaina.
Quando havia mulheres para a
travessia, usava-se um bote com lotação para cinco ou seis pessoas,
impulsionado à vara – eu era perito!
DESTINO:
SANTA VITÓRIA DO PALMAR
... e seguimos viagem. Foi
uma odisseia. O Nilo era uma fera para dirigir. O mar continuava crescido, a
praia estava intransitável com inúmeros riachinhos barrancosos no trajeto,
impedindo o trânsito.
Quando isso acontecia, o
Nilo contornava o riacho por dentro do mar e a água do mar entrava pelo piso do
automóvel como um chafariz, deixando-nos bem molhados, principalmente os pés.
De vez em quando era preciso
descer para empurrar o carro que molhava as velas e se apagava. O Lino descia
para secar as velas do motor e nessas ocasiões as rodas do carrinho se
enterravam na areia umedecida pela água e era uma luta para tirá-lo do
atoleiro.
Fazia um frio de matar
passarinho e nós continuávamos seguindo naquela imensa e solitária estrada onde
só se via terra e mar. Fizemos uma parada no Albardão e na casa do faroleiro,
que era o Trinta e Um, filho do velho Documento, da Barra do Chuí e ali tomamos
um reconfortante café, compramos mais uma garrafa de canha e seguimos viagem.
Do Albardão à Barra do Chuí
são mais ou menos uns cento e vinte quilômetros. Era por volta de dezesseis
horas da uma tarde fria e cinzenta, o vento soprava com menor intensidade, em
consequência o mar estava mais calmo e a praia ficava cada vez melhor, o
fordzinho obedecia perfeitamente ao comando do chofer e dono, o extraordinário amigo
Lino.
A viagem se tornou mais
tranquila e o trago corria solto, para combater o frio, que cada vez mais nos
castiga. Mais alegres, começamos a declamar.
Chegamos na Barra à boca da
noite e descemos um pouco para espichar as pernas e comemorar a vitória de
termos chegado a terra firme e continuamos a viagem de mais trinta quilômetros
até Santa Vitória do Palmar, aonde chegamos a cerca de dez horas da noite, com
a graça de Deus.
Com frio e os pés ainda
molhados, mas feliz; a mãe, vendo-me assim encarangado disse à Tota para trazer
um cálice de licor de butiá, nossa fruta da terra. Estava uma maravilha, mas
tomei pouco, pois tínhamos bebido muito na viagem. Tomei um banho reparador,
conversei um pouco e fui para a cama.
Na manhã seguinte
levantei-me cedo, conversei um pouco com o pessoal da casa e fui para a rua
sentir o pulsar da minha terra natal. Como era linda! Aos meus olhos, ao menos.
Naquela época era praxe os estudantes que iam para fora do município, procurar
os parentes, um por um, dando notícias, mesmo os que morassem longe.
A
PRAÇA DOS ITALIANOS – A PRACINHA
“Pido a lós santos Del cielo que ayudem
mi pensamiento
Les pido en este momento que voy a
contar mi historia
Me refresquen La memória y aclaren mi
entendimiento”
Marin Fierro
Nasci em Santa Vitória do
Palmar, a terra dos verdes palmares, naquela imensa planície apertada entre a
Lagoa Mirim e o Oceano Atlântico, no extremo meridional de nossa pátria,
fustigada na estação de inverno pelos ventos pampeiro e minuano, vindos das
planuras dos países do Prata.
Sou o caçula de uma família
de onze irmãos, contando comigo, sendo sete homens e quatro mulheres.
Morávamos numa casa modesta,
porém ampla o suficiente para nossa família e contendo, ainda, um grande
terreno na parte dos fundos, no qual se plantava verduras e milho.
Havia um galpão de madeira,
distante cerca de vinte metros da residência onde se guardava lenha e diversos
utensílios de trabalho na terra, como enxada, pás, ancinhos, etc.
Aquele galpão era também o
palco preferido para as brincadeiras. Ali éramos fazendeiros, construindo os
aramados das propriedades com pedaços de bambu, onde manobrávamos com nosso
gado representado por ossos calcinados das colunas vertebrais e dos joelhos de
gado vacum.
Em nossa casa havia também
um cachorrinho branco chamado pombinha. Era de estatura mediana e raça
indefinida, temperamento dócil e brincalhão, porém agia como um verdadeiro
guardião de nossa residência. Ai de quem entrasse em nosso pátio à noite. O
pombinha se botava em cima que era uma verdadeira fera. Lembro-me de uma noite em
que os irmãos mais velhos tinham saído, ficando em casa eu, ainda guri pequeno
e minha mãe; um ladrão entrou em nosso pátio e para se livrar dos dentes do
pombinha deu-lhe diversas punhaladas, mas o cachorrinho não se entregou e botou
o larápio a correr.
Felizmente o querido cãozinho,
devidamente tratado, em pouco tempo ficou curado dos ferimentos recebidos do
assaltante noturno e continuou vivendo conosco ainda por muitos anos.
Nossa moradia ficava situada
perto da Praça dos Italianos (depois, Praça dos Donato). Naquela época era
conhecida apenas como A Pracinha.
Consistia num quadrado de
terra de mais ou menos cem metros por cem, cercado por todos os lados com duas
fileiras de acácias e cortada em diagonal por duas fileiras das mesmas árvores,
formando assim quatro gramados que serviam de campo de futebol para toda a
gurizada dos arredores.
Jogava-se durante todos os
dias de manhã e de tarde, depois das aulas. Os times eram formados na hora
pelos mais velhos ou então pelos eventuais donos da bola, quase sempre de
borracha e raramente de couro.
As partidas eram disputadas
com os jogadores calçando alpargatas ou tênis, e a maioria de pé-no-chão, o que
acarretava a ocorrência de algum dedão do pé quebrado e algumas das unhas
rachadas, em virtude de raízes de árvores que emergiam do solo.
O time principal, que
representava A Pracinha, nas disputas com os clubes representantes de outras
zonas eram escolhidos entre os mais velhos e melhores jogadores, que
constituíam o “primeiro quadro”. Dele faziam parte meu irmão Manduca, o Mário
Donato, o Lito Morrone, o Jorge, de apelido “lampião”, e outros.
O segundo time era constituído
com os de menor idade. Naquele tempo existia uma grande rivalidade entre a
gurizada do Centro e da Pracinha, inclusive com batalhas noturnas entre as duas
facções, armadas com pedaços de paus e tijolos e até com o uso de bodoques
municiados com cascos de telhas de barro.
A Pracinha era também o
palco de combates entre os de menor idade, geralmente fomentadas pelos mais
velhos, que formavam roda para se divertirem, aplaudindo os vencedores e
gozando com os perdedores. Qualquer motivo, por mais banal que fosse, era
motivo de brigas. Bastava que um dos guris dissesse para o outro, “escuta, tchê, aquele fulano está dizendo
que não tem medo de ti e que tu tem cara de abobado.” Pronto! Já estava
formada a peleia, que durava até que alguém apartasse ou que algum dos
contendores desistisse da luta, pois todos faziam parte da turma da Pracinha e
a maioria das famílias eram unidas por laços de parentesco e amizade.
Também tomei parte em várias
brigas e embora fosse de compleição meio franzina, era respeitado entre a
gurizada.
Naquele tempo a maioria das
casas possuíam grandes quintais com árvores frutíferas das mais variadas
espécies. Os moradores eram italianos ou descendentes dos mesmos. Esses pomares
eram por nós visitados furtivamente à noite e de lá saíamos com os bolsos
carregados com frutas da estação, comidas logo na primeira esquina deserta, bem
distante da casa cujo quintal fora assaltado. Na época não considerávamos isso
como roubo, tendo como ponto de honra não estragar as árvores e não apanhar
frutas ainda não amadurecidas.
Frequentei o Colégio
Elementar de Santa Vitória do Palmar, que era um educandário estadual da
cidade, distante umas quinze quadras da Pracinha. No inverno era um sacrifício
irmos diariamente às aulas, pois caminhávamos quebrando gelo das tremendas
geadas que se acumulavam no gramado da Praça General Andréa, a qual éramos
obrigados a atravessar para chegarmos ao colégio.
Guardo boas recordações
daquele Colégio Elementar, como era conhecido em toda a cidade.
O diretor era o professor
Tancredo Blota, ex-padre jesuíta, homem de grande saber, extremamente bondoso e
correto.
Das professoras, recordo-me
da senhoria Dalva Dupuy, ótima mestra; da professora Rosa, muito enérgica, não
admitia conversas nem brincadeiras durante as aulas, mas atuava com grande
eficiência. A professora Darci Venturine, bondosa e também muito eficiente.
Quanto a mim, nunca fui um aluno brilhante, de passar o dia estudando, porém,
nunca rodei de ano e ficava entre os primeiros lugares.
O curso primário ia até a
oitava série, mas eu fiquei no colégio até a sétima série, porque tinha que me
preparar para ingressar no Ginásio Gonzaga, na cidade de Pelotas. Para tal era
necessário ser aprovado num exame de admissão que era um verdadeiro vestibular.
A família decidiu que eu e
meu irmão Antônio, que era mais velho dois anos do que eu estudássemos com uma
professora particular, para esse exame.
A indicada foi a professora
Zezeca, que morava na casa da Tia Ondina. Também a chamávamos de tia. Estudamos
com afinco e fomos para Pelotas. O exame foi um sucesso. Fomos aprovados com
distinção entre mais de duzentos candidatos. O Antônio ficou em primeiro lugar
e eu em segundo.
Tinha eu quatorze anos de
idade e o Antônio dezesseis. Fizemos a matrícula no primeiro ano do curso
Propedêutico do Ginásio Gonzaga. O Antônio ficou no internato e eu fui morar na
casa dos tios Pedro e Amélia, na Rua Andrade Neves, 516, em Pelotas. Lá fiquei
morando um ano. No segundo, fui também para o internato.
Concluído o Curso
Propedêutico, ingressamos na Faculdade de Economia de Pelotas, para fazermos o
curso de Contador, que funcionava à noite. Isso nos obrigou a deixar o
internato e irmos para uma pensão.
Antes de contar sobre a vida
em Pelotas, onde vivemos por seis anos, até 1942, preciso falar sobre como foi
a nossa viagem para aquela cidade.
O nosso município não
possuía ligação por rodovia transitável para ir-se até os municípios vizinhos,
tendo os veículos que usar como rodovia a costa do Oceano Atlântico no trajeto
entre os balneários Barra do Chuí e do Cassino, numa distância de duzentos e
vinte quilômetros.
Era uma via muito boa,
quando o mar estava calmo, porém quando os ventos do sul e do sudeste comeavam
a soprar as ondas se agigantavam e avançavam sobre a faixa de areia litorânea,
tornando-a intransitável.
Quando isso acontecia, a viagem
tinha que ser interrompida e os veículos estacionados sobre a faixa de areia,
fora do alcance das ondas, ficando ali até que o vento amainasse e a costa se
tornasse novamente transitável, o que não raras vezes demorava horas e até
dias. Por isso os viajantes se precaviam levando consigo um bom farnel e
agasalhos.
Outro fenômeno da natureza
que também provocava a maré enchente era a hora da saída da lua. Então a praia
se tornava intransitável para veículos a motor.
O proprietário da linha de
ônibus de Santa Vitória a Rio Grande era o seu José Benito de los Santos,
uruguaio radicado em Santa Vitória do Palmar a muitos anos, grande parte dos
quais dirigindo seus ônibus pela margem do Atlântico até o Rio Grande e
vice-versa, de modo que era conhecedor por experiências próprias de todas as
facetas daquelas viagens, sabendo a hora em que devia parar o veículo e a hora
em que devia seguir viagem.
De los Santos era um homem
cavalheiresco. Tratava a todos com lhaneza, mas também se fazia respeitar
quando era necessário, dirigindo o seu veículo naquela praia imensa e deserta
tal como se fora o comandante de uma nave marítima, com toda a maestria e cuidado.
Não existia então Estação Rodoviária
e os ônibus iam apanhar os passageiros em suas residências, acarretando grande
dificuldade ao tráfico, pois as ruas não eram calçadas e quando chovia,
tornavam-se um grande atoleiro. Aquela via pela margem do Oceanos durou até que
foi construída a estrada pelo interior do município, o que levou vários anos.
Em nossa primeira viagem
aconteceu algo pitoresco que a bem da verdade devo relatar. Nós nunca havíamos saído
de Santa Vitória para lugar nenhum. O trajeto entre o Rio Grande e Pelotas era
feito por via férrea. Não havia ainda estrada de rodagem.
Os passageiros que se
destinavam a Pelotas, como nós, eram desembarcados na Estação-Junção,
aguardando a passagem do Trem.
Estávamos sentados diante da
Estação, com a nossa bagagem, quando, de repente, se ouviu o que nos pareceu o
berro de um animal selvagem, tão forte e estridente ressonou. Era o apito do
Trem que chegava. Foi um tremendo susto e me preparei para fugir. O Antônio
teve que me segurar.
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Hoje, 22 de Novembro de
2012, o meu pai, Carlos Rotta Rodrigues,
dono destas bem traçadas linhas, estaria completando 89 anos de idade, se ainda
estivesse vivo. Ele desencarnou no ano de 2007, com 85 anos de idade. Era um
mergulhão apaixonadíssimo pela sua terra natal.
Esta “Pasta” estará sujeita a alterações, inclusões, revisões, etc.,
pois é bem possível que eu descubra mais escritos dele, perdidos na papelada.
PASTA 9 - TEMPOS DE ESCURIDÃO
João Felipe viu duas
vezes o filme LULA – O FILHO DO BRASIL e foi taxativo: “— penso que deveria
ser matéria obrigatória nas escolas brasileiras. É aula de civismo! O filme
ajuda a redescobrir essa complexa formação do Brasil. A cena do filme da vida
do Lula no estádio de futebol paulista, sem aparelhagem de som e completamente
cercados pela polícia da ditadura... e logo após a prisão do Lula... detonaram
as minhas lembranças, de toda aquela época terrível. Nós, os estudantes,
fazíamos então todo o esforço possível para viabilizar a anistia.”
João Felipe não
conseguiu dormir na noite em que viu o filme. Vinham-lhe à lembrança todas
essas coisas, a começar pela prisão do Frank, em Porto Alegre.
Jamais lhe passara
pela cabeça que o Frank estivesse envolvido com os grupos da luta armada. Ele
era o irmão mais velho de dois amigos com os quais muito convivia. Na verdade,
o Frank era um camarada distantes da turma toda, pensava João. Aliás, turma
absolutamente imantada na Bossa Nova emergente e na Jovem Guarda.
O Frank - soube
depois - estava entre os sequestradores do embaixador americano e seria (era)
membro da VPR - Vanguarda Popular Revolucionária (*). Que escândalo! E que
drama! Que loucura foi tudo aquilo!
Para João, marcara o
início da temporada da escuridão e do medo. Nunca deixou de frequentar os dois
irmãos do Frank, embora eles fossem constantemente seguidos pelos agentes do
DOPS, tivessem sua casa invadida, com violência e desrespeito, à sua mãe viúva
e a uma de suas irmãs, grávida de quase nove meses.
Submetido à tortura,
o Frank tentou o suicídio. Familiares mais velhos de João, inclusive seu pai,
mobilizaram-se para dar um jeito de suavizar as coisas para o Frank, acionando
amizades institucionais possíveis. E sem dúvida ajudaram, pois logo depois
disso aconteceu a transferência dele para um presídio comum, longe da mão dos
torturadores.
Pegou sete anos. João
queria falar com o Frank de qualquer maneira, mas toda uma barreira familiar
aconselhava-o a deixar para lá, dar um tempo era o melhor, diziam.
Muitíssimas coisas
aconteceram depois desse tempo, até que um dia, inesperadamente, dia glorioso
de muito sol na Ilha de Santa Catarina, aliás, em 1979, João Felipe caminhava
pela Vidal Ramos quando deu com o Frank vindo do lado contrário, boa pinta,
aquele guerreiro teimoso e obstinado, o Frank.
“— És tu mesmo,
cara”? Era! Riram,
abraçaram-se, ambos estavam trabalhando! O Frank estava feliz! E sem marcas
aparentes das torturas. A vida era maravilhosa!! Trocaram cartões, endereços,
telefones, mas nunca mais se viram. Esse cara de boas maneiras não queria
comprometer mais ninguém, possivelmente.
Pouco antes, ou pouco
depois disso, João vira os Generais deixando o poder. Vira o povo de
Florianópolis colocar o General Figueiredo em maus lençóis, na Praça XV de
Novembro, e no Palácio Cruz e Souza. Viu muitas, muitas coisas nesta vida que
anda rápida demais para seu gosto, como gosta de dizer, inclusive muitíssimos
operários de fábricas catarinenses com dedos e mãos decepadas por máquinas,
tornos e prensas que não possuíam os devidos equipamentos de segurança, tal
qual o dedo decepado do Presidente Operário Brasileiro.
A atuação da atriz
Glória Pires, como mãe do Presidente Lula, que coisa mais tocante! As mulheres
brasileiras... a atriz e a mãe, a verdadeira, que duas personalidades fortes! O
Brasil, sem dúvida, sua história, seu processo de formação especialíssima, com
seus efeitos na miscigenação e no emocional do povo, era o maior dos
detonadores emotivos de João Felipe.
E ele lembrava também
que tinha chorado em Porto Alegre: "— pois é cara, sou mesmo um chorão,
me debulhei em lágrimas ao entrar naquela urna, numa esquina da Demétrio
Ribeiro, para votar após quase trinta anos daquela ditadura infernal, daqueles
tempos sombrios, oscos, proibidos de exercer esse direito básico de cidadão. E
chorei também ao eleger o Lula e depois, chorei ao eleger a Dilma Presidente,
por ser mulher, por ser guerreira, corajosa, por ter sido torturada por aquela
insana e terrível repressão que se abateu sobre o Brasil a partir de sessenta e
oito”.
_____________________
(*) A Vanguarda
Popular Revolucionária (VPR) foi uma organização de luta armada brasileira de
extrema esquerda que lutou contra o regime militar de 1964 no Brasil, visando à
instauração de um governo de cunho socialista no país. Formou-se em 1966 a
partir da união dos dissidentes da organização Política Operária (POLOP) com
militares remanescentes do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR).
PASTA 8 - O MESTRE
Os colégios dele foram os possíveis. O Colégio São Carlos, das freiras, onde se sentia em segurança e a partir do primeiro ano primário, possivelmente por questões de economia familiar, a famigerada “escola pública”; o convívio com a plebe ignara. No caso, o amedrontador e distante Grupo Escolar Manoel Vicente do Amaral.
O medo de
enfrentar-se com os valentões da escola pública não era pouco. As intermináveis
e diárias brigas de rua em sua zona já
eram bem difíceis; deixava-o ressabiado e meio acovardado. Enfim, tinha que
enfrentar, era o jeito, nem que fosse desviando uma que outra rua,
estrategicamente.
Os anos da escola
primária passaram-se muito rapidamente. Mas não foram mais importantes do que
as férias nas fazendas dos primos e amigos e muito menos do que as fantásticas vacaciones na Barra do Chuí.
E então chegara o
tempo de vestir a farda, o uniforme do Ginásio Estadual de Santa Vitória do
Palmar. Era uma farda efetivamente militar, com galões no ombro que indicavam,
assim como os galões de cabo e sargento, o ano que se estava cursando – do primeiro
ginasial (um galão – um risco em V deitado apontando para fora) até o quarto
(quatro riscos, em azul marinho e branco).
O primeiro ano do Ginásio
equivalia a sexta série, pois eram cinco anos de primário e depois mais quatro
anos de ginásio, para seguir então com o curso científico, ou clássico, ou uma
escola técnica. A partir daí, vinham então os cursos superiores – as
faculdades.
Para ingressar no
ginásio - 6º série - era preciso fazer uma espécie de vestibular – o exame de admissão.
Ele passou, a duras penas, de baixo de muita briga e muita teima da mãe e da
“cinta” do pai, além de uma infinidade de professores particulares e castigos. E
por quê? Simplesmente porque para ele nada podia ser tão ou mais importante do
que jogar futebol – que jogava mal, lutar com espadas – que jogava bem, andar a
cavalo e depois de bicicleta, lubrificar as armas e caçar.
Boa parte dos
professores do Ginásio eram bons, sem dúvida, mas aí chegou a sua sorte. Aportava no Ginásio um professor diferente,
com fala diferente, abordagem nova, um jeito de tratar e se relacionar com os
alunos fora do convencional. Retornava para Santa Vitória, com o propósito de
lecionar geografia - o professor Homero. Fechava-se um circuito. Homero era a
peça que faltava para despertá-lo e certamente a outros.
De repente um clique aconteceu e que o fez enxergar,
entre outras coisas, a enorme biblioteca que seu próprio pai tinha na sala de
visitas.
Começou por
devorá-la. Tinha 13 anos. Estava atrasado!
PASTA 7 - O GRANDE HERÓI
A escola e o sistema educacional, nos anos sessenta, no interior do Rio
Grande do Sul eram precários. Havia, de um lado, os valores familiares, esses
sim mais ou menos consistentes, a depender de cada família e ele os teve; de
outro lado a escola, que apresentava um sistema em crise sempre falimentar,
estruturado na rigidez das décadas anteriores e suavizado, quando se tinha
sorte, nas capacidades de um que outro mestre que aportasse no colégio,
trazendo a sua bagagem particularíssima.
Santa Vitória do Palmar, nos 50 e nos 60, como na maior parte do
grande interior do Brasil, migrava ainda da era do transporte animal para a
tração mecânica – a era do automóvel.
O grande herói dessas duas décadas foi o caminhão, segundo o eminente
economista e professor Ignácio Rangel. O caminhão foi o propulsor da economia
brasileira, posto que não tivesse havido outra ou melhor forma de desbravar e
ocupar o vastíssimo interior do Brasil a partir do litoral já povoado, devido
as características próprias deste país gigante. O herói foi o Caminhão!
A magia das carroças, das charretes, dos tílburis e das rapidíssimas e
românticas “aranhas”, saiam de cena para dar lugar aos automóveis de todos os
tipos e formatos, importados dos EUA e Europa, dos modelos A (os calhambeques)
aos rabos-de-peixe. A euforia do pós-guerra, a vitória aliada, os heróis norte
americanos que invadiam a todas as casas brasileiras, pelo rádio, pela TV e
cinema, mudaram o país, a cultura e os valores. O cigarro, o whisky, a audácia do herói militar, os
automóveis, os aviões, os Jeep e os maravilhosos caminhões agora eram os
protagonistas.
Na música e nas artes o país tentava reagir e nos presenteou com
movimentos que materializaram Os Anos
Dourados. Foi o canto do cisne. Os estrangeiros vieram com tudo e dominaram
o Brasil completamente, sem armas, pelo poderio econômico e a sagacidade
administrativa. Bem, estávamos acostumados, desde os portugueses que nos
“descobriram”. E os holandeses, e os franceses e os ingleses, e etc.
Pois o caminhão e tudo o que ele representa, em termos de infraestrutura
necessária, na atualidade, de herói passa a vilão, determinando em grande parte
o caos nacional, junto, claro, com outros conhecidos facínoras, como as drogas
e os narcotraficantes, os burocratas, a corrupção e a impunidade e vamos indo
“Aos Trancos e Barrancos”, título, aliás, de um dos primores do sábio,
pensador, educador e antropólogo Darci Ribeiro, autor também de O Povo
Brasileiro. É preciso citar Rangel e Darci. Este último a ser ainda devidamente
honrado, por ser o primeiro pensador que nos obriga a ver-nos a partir de nós
mesmos, a partir da sua obra – não mais sob a ótica do estrangeiro dominador e
colonizador.
PASTA 6 - VOYEUR
A sua tradição familiar, principalmente a ascendência
do avô materno, marcaram em definitivo a sua vida – para pior e para melhor.
As mães, em primeiríssima instância, são bússola e
sextante na vida dos filhos. Filho sim, mas neto de um certo Capitão – na
verdade Major do Estado Maior do
General Zeca Neto. Este, o principal chefe guerreiro da Revolução de 1932, no
Rio Grande do Sul.
Sua mãe, indiscutivelmente – para pior e para melhor –
foi marcada a ferro e fogo pela personalidade desse pai revolucionário, típico
gaúcho, um tanto irreverente, sempre disposto às rusgas da política, que em sua
época ainda resolvia tudo pela força das armas. Esse avô foi revolucionário,
jogador e boêmio, delegado de polícia, fazendeiro, criador de gado e arrozeiro,
faliu e endividou-se com o Banco. Parte de sua história pessoal de vida ainda é
certo padrão na região dos campos gaúchos, principalmente as falências e o
eterno endividamento com o Banco do Brasil.
Deterministicamente, também um pai, mesmo que não tão
agudamente quanto uma matriz uterina, influencia a vida de um filho. E por
razões históricas, mais ainda aos primogênitos, como ele.
Esse pai, por sua vez, também sofreu as influências
das tradições xucras e guerreiras dos gaúchos, natural que era da fronteira
brasileiro-uruguaia, mas trazia com ele um novo tempero – toda uma tradição
européia, adquirida da intrepidez e conhecimentos do seu avô italiano
(calabrês) um Rotta dos precursores e negociadores da posterior vinda de um
navio com 400 famílias de colonos italianos, lá pelo final do século XIX,
principalmente para Santa Vitória do Palmar, mas que muitos desses, depois se
espalharam pelo Brasil afora, pelo Uruguai e pela Argentina. Este episódio da
colônia italiana vitoriense pode ser visto em detalhes na obra do historiador
Péricles Azambuja – História dos mares e terras do Chuí.
Essa mistura étnica o jogou para a Faculdade de
Economia, que antes da ditadura militar que se iniciou com o Golpe de Estado de
1964, chamava-se Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas. Ele embarcou
nessa canoa muito mais pelo “políticas” do que pelo “econômicas”.
Podemos considerar aqui o Movimento pela Legalidade,
deflagrado a partir do Rio Grande do Sul, em 1962, chefiado pelo Governador
Leonel de Moura Brizola, como o primeiro grande marco nos acontecimentos que
vieram a culminar com os Anos de Sombra – os quase 30 anos da ditadura militar.
Ele tinha 15 anos de idade quando Brizola agitou
politicamente toda a nação num grito de basta aos desmandos contra a
Constituição Brasileira. Adolescente, chegava a Porto Alegre, capital gaúcha,
para ver todo esse movimento de muito perto – o governador Brizola no Alto das barricadas
do Palácio Piratini, a determinação dos gaúchos de pegar em armas em defesa da
carta magna e depois, as correrias do povo, em confrontos permanentes com as
tropas de choque e a cavalaria.
A vontade de ver tudo de muito perto era tanta que
contrariava sempre a vontade dos pais. Já por volta de 1964 levantava-se muito
cedo para perambular pelo centro de Porto Alegre e retornar somente tarde da
noite; e corria junto com o povo, de lá para cá, evitando apanhar ou ser preso
pelos terríveis capacetes vermelhos da Brigada Militar do Rio Grande do Sul.
Consumado o Golpe Militar de 1964, a casa caiu, literalmente. Morava
então na Rua General Portinho, em Porto Alegre. Essa rua ficava a dois
quarteirões, no máximo, dos Comandos Militares – do Quartel General do Terceiro
Exército e do Quartel General da Brigada Militar. A rua estava cercada por
trincheiras improvisadas, inclusive nos bueiros e o movimento das tropas a pé e
motorizadas era constante, também de tanques de guerra. O rádio de pilha ainda
era o grande canal das notícias. A Força Aérea iria ou não bombardear a cidade
de Porto Alegre?
Sabe-se hoje que a ordem foi dada, por Orlando Geisel
– irmão do General Ernesto Geisel, penúltimo General Presidente da era dos
milicos no poder. Porém a ordem não foi cumprida. Oficiais pilotos da FAB, da
Base Aérea de Canoas (V Região) negaram-se a obedecer ao General ensandecido.
Veja-se detalhes desse episódio em “1964 – Golpe ou Contra Golpe”, do brilhante
historiador brasileiros Hélio Silva.
Sobreviveu a esses tempos, talvez por naquele momento
estar apenas exercendo a sua melhor e mais constante atividade, a de “voyeur”
– vedor da vida – caminhando “sem lenço e sem documento” ou fugindo em
correrias pelas ruas entre os dois mais importantes Quarteis Generais da
História Pátria daquele agora, pois ficavam no caminho entre a sua casa e a
Praça da Alfândega – a praça do povo – seu objetivo de todos os dias, a via da
liberdade - para uma maior compreensão das coisas?
PASTA 5 - A ARMA OU... A FAB?
Certamente por influência de um piloto da Força Aérea Brasileira,
muito próximo de sua família, um oficial que terminaria seus dias como
Brigadeiro do Ar, ele decidiu ser piloto – e de avião de caça! Aos quinze anos
já tinha urgência disso.
Uma das primeiras coisas que fez ao chegar a Porto Alegre foi pedir ao
pai que lhe pagasse um cursinho para ingressar na EPECAR – Escola Preparatória
de Cadetes do Ar - em Barbacena, Minas Gerais.
Seu pai relutou, mas acabou concordando, e costumava comentar: “se tu passares nesse exame, eu vou pastar
de quatro na Praça da Redenção!” - tanto por perceber o traste de
adolescente problemático que o filho era como também por saber o quanto era
difícil a aprovação nesse exame de admissão.
Pois para surpresa geral o menino que já se sentia homem feito, passou
na prova. Diga-se também que a surpresa maior foi para o próprio.
No início dos anos sessenta as condições de comunicações e
transportes, no Brasil, eram precárias. Ele estava passando as férias de verão
na Barra do Chuí, em Santa Vitória do Palmar. Como não acreditava na possibilidade
de aprovação, nem se preocupou em verificar o resultado pelos jornais. Quem viu
isso foi um tio que residia em Porto Alegre. O tio então passou “um rádio” (mensagem por radioamador)
avisando do milagre – foi aquele auê!
O personagem estava mergulhado em sua boemia precoce, de bailes,
namoros e serestas, pela bucólica Barra do Chuí, mas assumiu esse momento de
glória e disse - “eu vou!” - e foi!
Barra, Porto Alegre, Base Aérea de Canoas e Base Aérea de Cumbica, em
São Paulo. Muitos e muitos novos exames, físicos e psicotécnicos.
Houve um impasse ao se descobrir que ele era daltônico, embora em
pequeno grau. Tempos depois, ao ser reprovado nesses últimos exames, sem que
jamais o Ministério da Guerra dissesse o porquê (eles só respondiam que era
sigilo, mesmo com a interferência do piloto de caça, então quase Brigadeiro do
Ar), essa questão do daltonismo ficou como sendo a causa da débâcle.
Anos se passaram, ele foi amadurecendo, inclusive em sua autoanálise,
até concluir, sem medo de errar, que não foi o daltonismo a causa da sua recusa
pela FAB. Quem o reprovou foi o médico psiquiatra. Para o médico, o
adolescente não apresentava um equilíbrio emocional, e quem sabe até, traços de
caráter que garantissem o seu sucesso nesse empreitada radical – a de ser
testado em seus limites humanos para se tornar oficial-piloto. O médico não
quis assinar embaixo.
A dedução não seria tão difícil assim, para um adulto. Por isso ele
precisou que alguns anos se passassem para chegar a essa conclusão.
Aconteceram duas entrevistas com o psiquiatra. Os outros alunos
tiveram uma só. Relata-se a segunda: O psiquiatra disse que o chamara de novo
para que contasse mais uma vez o caso do tiro no braço, cujo ferimento recente
era impossível de esconder. Ele, ingenuamente, contou a mesma absurda e
ridícula mentira que havia contado para a polícia de Santa Vitória do Palmar.
Claro que o eminente policial de Santa Vitória que diligenciou o causo, também não teria acreditado
naquilo que os meninos de quatorze anos combinaram de relatar, mas, por sua
experiência e sensibilidade, amizade aos pais, etc, certamente aceitou as
precárias e improváveis explicações – e deu por encerrado o processo.
Mas o psiquiatra da FAB, que não tinha parte nem arte com essa turma,
não engoliu a história e sentiu o problema.
Na verdade não houve nada de horrível no caso, mas como já foi dito,
os tempos eram outros no interior do Brasil e na fronteira gaúcha lá pela
metade dos anos sessenta.
A meninada gostava de portar armas – imitando os adultos. Uma das
brincadeiras preferidas era atirar e caçar. Ele tinha ótima pontaria e se
orgulhava disso. As caixas e caixas de balas, calibres 22, 32 e 38 podiam ser
adquiridas, sem nenhum tipo de controle, no armazém da esquina, tanto quanto
cigarros e bebidas alcoólicas – era coisa de homens! E também de uma sociedade
deveras atrasada.
O incidente, ou acidente do tiro no braço foi mesmo sem intenções,
acidental mesmo, apesar das fofocas e conversas que diziam o contrário. Um
engano e uma falha de comunicação e no respeito ao código que a garotada tinha,
com relação ao porte de suas armas – não apontar e não disparar jamais, nem de
brincadeira, uma arma um para o outro.
A história, inventada e tramada por ele e sua turma foi para não ter
que entregar para a polícia a arma que efetivamente disparou o tiro – um lindo
revólver Rossi, calibre 22 – pois era uma relíquia que tinha adquirido
justamente naquele dia! Verdadeiramente, não adquiriu, mas trocou pela sua
escopeta, também calibre 22, com um dos garotos, justamente o que desferiu o
tiro.
Essas coisas que não dá pra explicar. Fizeram a troca, no quarto. Ao
darem por concluído o negócio, o dono do revólver entregou-lhe a arma, e pegou
a escopeta, mas por sovina, talvez, retirou as balas. No momento seguinte, foi
ao banheiro. E ele, o novo dono do pequeno revólver, puxou uma de suas caixas
de balas e recarregou, sem que o ex-dono visse o gesto, pois estava já no
banheiro.
Negócio concluído, ele recosta-se na cama, deixando a nova arma
(novamente carregada) na mesa de cabeceira.
Certamente um espírito diabólico aproveitou-se do momento. Ao sair do
banheiro, o ex-proprietário, rindo, brincando, sem dar tempo de nada, caminha
em direção a sua ex-arma – que evidentemente pensava estar descarregada –
pega-a e detona o tiro, apontado sem pudor bem perto do coração dele. O despudor
aqui vai por conta do desrespeito descarado ao código da meninada, que por
incrível que pareça, com exceção deste episódio, sempre funcionara.
Isso deu pano pra muita manga, na cidade toda.
E ele? Bem, com esse imbróglio
todo, ficou mesmo com o revólver calibre 22, niquelado novo, seis balas no
tambor, que manteve escondido por um bom tempo, até que a poeira toda baixasse,
mas... perdeu, possivelmente, a oportunidade de ser um bravo e heroico piloto
de caça da Força Aérea Brasileira. Como iria saber?
PASTA 4 – SANTA CATARINA
Garopaba
continua o paraíso do surf, também, olha só esse marzão, não é possível viver
muito tempo longe da Praia da Silveira, do Siriú, muitas vezes eu penso nisso
que falaste agora, mas a minha história é outra. Se eu começar a te contar histórias
do meu tempo, nós não falaremos as coisas que temos que falar.
Pois bem, eu não conhecia o Maurício, não
sabia nada da relação dele com o Érico e nem que era o grande editor do Rio
Grande do Sul. Não sabia nem que ele tinha sido o fundador da feira do livro de
Porto Alegre, ou melhor, acho que isso eu sabia. E a casa do Maurício era
badaladíssima, concorridíssima, por escritores e intelectuais de várias épocas.
Todos queriam bater papo com ele, e aparecer. Nessa época, pelo menos, eu não
queria saber de charme nenhum. Rapidamente entendi a situação e aproveitei a
cabeça e a experiência dele para por a minha mais em ordem, pois que
decididamente não estava!
Monopolizei
o Maurício uma noite inteira. A primeira noite - acho que foram duas noites - questionei-o
muitíssimo, nas entrelinhas, sem abrir demais as coisas Era 1972, compreendes? A
ditadura imperava! Na verdade foi uma ajuda providencial, definidora de rumos.
Eu estava de cabeça feita, totalmente
cego e ensandecido. Os grupos de esquerda clandestinos tinham uma técnica de
manipulação de cabeças muito eficiente e o maior aliado deles era o próprio
sistema imbecil que dominava o país. A direita brasileira era obtusa e feroz e
nos jogava naturalmente para os braços do radicalismo cotidiano e tinha também
todo o romantismo de maio de 68, ainda fresquinho em todos nós.
O
Mauricio me ajudou a travar
definitivamente as armas da destruição. Falou-me do mundo, da vida, e,
sobretudo dos judeus. Isso foi fundamental, era experiência atávica, dele. Essa
trajetória de uma raça sofrida, deu-me uma ideia sobre um novo caminho. Isso me
salvou
A cento e vinte quilômetros por hora, o carro
varava a noite fechada de um outono típico da região sul. Nem frio nem calor.
Os eventuais arrepios eram por conta da janela aberta além da medida cautelar,
ou quem sabe, simplesmente por causa do negror da noite.
Você não está dormindo, não?
Faz
muito tempo, num dia fatídico, ridículo da minha vida, a verdade é que eu quase
me tornei um assassino. Bem, eu poderia ter me tornado um assassino, bastaria
uns copos de cerveja a mais. Havia um deputado, em Porto Alegre , que no
auge da ditadura, era a caricatura mais grotesca que se possa imaginar, do
civil filho da puta, entreguista, safado, medonho. Via comunistas até debaixo
da cama. Para ele, todos os que discordavam de suas idéias políticas e do
regime militar, eram comunas, guerrilheiros, bandidos. Era um fascista! Tinha
as rádios e as TV’s em suas mãos e torturava a juventude estudantil com seus
discursos cretinos.
Juntou-se,
num determinado momento cósmico, numa rodada de cerveja e mais uns três ou
quatro comprimidos de dexamil - que
era uma das drogas da moda, um “ligante” ridículo, que nos deixava mais
angustiados ainda - o fato é que eu queria me mostrar para aquela mulher, uma
menina por quem eu estava apaixonado. Todos nós queríamos que o filho da puta
daquele deputado morresse meio mundo queria, e eu, valentão, logicamente na
frente dela, disse que faria o serviço. Eu mato! E matava mesmo, duvidas? Graças
a Deus a turma votou contra. Acho que mataria. Não sei te explicar exatamente
porque, mas mataria...
Aliás,
não vou escrever mais nenhum livro, nenhuma pesquisa! Dou por escrito o meu
livro sobre o Fernando Ferrari. Como diz o Maldaner
sobre os discurso grandes que lhe dão para ler: Dou por lido!
Tu
viste o filme JFK? Brilhante! Imagina o que eu teria a dizer sobre um assunto
meio igual? O que poderia eu, pobre habitante de um pais subdesenvolvido em
continente pobre, apresentar de novo, ou mesmo razoável, frente ao poder da
riqueza dos irmãos do norte? É, e também da inteligência deles. Realmente são
muito inteligentes! Não dá pra competir! Eu passo a maior parte da minha vida
lutando pela grana da sobrevivência, do mínimo, pagar aluguel, essas coisas,
roupas, imagina! De onde tempo e dinheiro para financiar pesquisas, estudos,
análise de documentos, entrevistas, viagens.
Silêncio.
A minha mente prática te
chateia?
Tu
vais pra Santa Maria, conheces os descendentes do cara, eles te dão documentos,
relembram fatos, histórias, tu pegas as mais promissoras e vais fundo, juntas
com os teus recortes de jornais, encontras alguns ex-delegados de polícia,
inspetores aposentados, perguntas, anotas e descobres aquilo que já sabemos:
explodiram o avião do homem, como o do Marcos Freire, dizem que até o do
Ulisses Guimarães. Fim. Aí está toda a história. Talvez se conseguires alguns
detalhes mais pitorescos possas servir para uma daquelas reportagens da Veja
ou da
Isto É e eu te pergunto: E daí? O que adiantará praticamente tudo isso,
se vivemos no país da impunidade. Ah, temos que acrescentar que uma das razões
de tanta impunidade é que também não se consegue descobrir nada, os “culpados”,
pois os culpados são sempre algo meio complicado de especificar, são eles, mas
eles quem? O sistema? O sempre vago sistema e nunca se passa disso e quando se
passa, e chega-se a apontar culpados, com provas e tudo, também não acontece nada.
É o Brasil, cara! É o Brasil!
Na
verdade eu não faria nunca toda essa caminhada investigatória. Primeiro porque
não sou detetive. Segundo porque não tenho tempo e nem dinheiro para ficar
furungando a história ou toda essa coisa. No fundo eu tou só fazendo onda, uma
onda comigo mesmo, entendes? Sei lá! Pra não cair a peteca, quem sabe. Eu sei
que existe uma necessidade profunda de Reforma Agrária neste país. Estes tempos
de democracia são tão impressionantemente diferentes do tempo da ditadura! Os
inimigos do povo ficam muito mais camuflados, tão escondidos que a gente vai
esquecendo dessa guerra que é uma realidade. Eu não quero esquecer! Digo-te com
sinceridade que não é nenhum sentimento de vingança ou desforra pelos tempos
negros, mas é porque não acredito nessa paz. Acho que o perigo de um retorno
ainda é muito forte é coisa real, eu sei! E não é paranóia. Quando eu faço
essas minhas pesquisazinhas, parece então que me coloco um pouco mais na verdade
dessa guerra que não esta aparecendo tão bem, hoje em dia.
PASTA 3 - DIÁLOGOS
— Carlos
é radical nas suas conclusões. Isso se expressa até nas suas
roupas e atitudes. Ele não descobriu ainda o mecanismo harmonioso
governado por Leis Maiores. Até compreende e aceita, mas a verdade é
que ele ainda não sentiu a naturalidade da lei das vidas sucessivas
e quando se põe a analisar o mundo do ponto de vista de uma
existência apenas, os grandes enganos passam a ser uma constante,
acaba-se até por nem acreditar em Deus. Sei que isso é um estágio
natural para todo ser humano, mas me preocupa muito. As atitudes do
Carlos podem conduzi-lo a um beco sem saída. É meu filho, porra!
Final
de tarde de um dia quentíssimo na Ilha, no bar Os Apóstolos. O suor
misturava-se à oleosidade da pele após um dia de árduo trabalho.
Uma rodada de cerveja. Os amigos conversam.
— Eu
acho que tu te preocupas demais, Luiz Fernando, comenta Ricardo.
— Não
Ricardo, a vida tem me ensinado muitas coisas e eu vejo as ligações
com muita preocupação. Ele não consegue me esconder coisa alguma,
nem as que faz mais escondido. Essa sua viagem ao Peru é
perigosíssima. Nada a ver com preconceito a mochileiros ou algo
parecido. São as companhias que me preocupam. Queres saber a
verdade? Pois bem, fazer um curso de guerrilha urbana ou rural não é
tão difícil assim.
— Basta
você ser um obtuso radical e as aproximações das mentes
sintonizadas nas soluções radicais, pelas armas, logo te encontram.
A juventude sempre foi e é massa de manobra, da esquerda ou da
direita, principalmente porque a maioria dos jovens acha que sabem
tudo. Não te lembras? E o pior é que essa atual raça de
guerrilheiros latinos perderam até o senso de dignidade política,
quero dizer, dos ideais, você entende? Não tem mais essa coisa dum
Bento Gonçalves da Silva por detrás do fio do bigode, dum ideal
à la Bolívar. Acho que esses ideais morreram
definitivamente com Guevara. Guevara foi o último, a fronteira. Até
o El Rei Fidel já se deu conta disso, mas imagina se o Carlos e a
turma dele têm condições, hoje, de avaliar essas complicações.
— Sim,
mas o que queres dizer com isso? Qual a diferença que vês nessas
atitudes de guerrilheiros modernos com antigos? Guerrilha é uma
coisa técnica, é uma guerra intestina, é a velha luta pelo poder,
ou mudou? Vou te dar uma só diferença, mas tão marcante que vais
perceber o resto. Não mais é possível entender o mundo, bem, o
mundo da política, da sociologia, da economia, dos sistemas, sem
introduzir uma variável que se impôs completamente no decorrer do
século XX: o crime organizado. Não se chegará jamais a conclusões
razoáveis, a prognósticos bons, analisando as coisas unicamente na
tradicional esquerda e direita. Acontece que no mundo organizado
importante de hoje há esse poder fantástico das organizações
criminosas, encarregadas do tráfico de drogas e de armamentos
bélicos, que assumem posições de esquerda ou direita de acordo com
as suas conveniências, seus interesses.
— É,
eu penso que tens razão. Esse é um fator que complica a análise,
tanto de conjuntura como no longo prazo. Eu, francamente, tenho
dificuldade de fazer previsões para o Brasil ou para a América
Latina. Falo, discuto, mas no fundo eu não tenho nenhuma segurança.
O que vai acontecer? Sei lá! O futuro a Deus pertence! Olha bem,
Ricardo, nós estamos tentando consolidar um processo democrático,
após trinta anos de ditadura da direita. Na medida em que se
fortalece a democracia, pelo crescimento das forças populares que se
organizam a quem o sistema mais incomoda? Aos empresários? Não! Ao
capital! Isso mesmo! Então, veja bem, ficam ameaçados, hoje, o
empresariado corrupto, que tem tido um poder enorme no país, caça-se
PC Farias e seus amigos. Pressiona-se Fernando Collor e a república
das alagoas. Na medida em que a sujeira mais aparece, respinga cada
vez mais aonde? Claro que entre os empresários, políticos, figurões
e quem sabe até em alguns militares aliados à corrupção,
aboletados há décadas no poder. Vou te dizer uma coisa, quando eles
se sentirem demasiadamente pressionados vão dar tiro pra todo lado,
vão querer a volta da ditadura. Aliás, à boca pequena, na base dos
fuxicos, isso é o que mais se comenta por aí. Por enquanto isso não
é nada sério, mas com o tempo!
— Pois
é, diz que o Sarney quer ser o Fujimori brasileiro...
— O
homem tá se oferecendo? Bem, isso daí é mais complicado ainda.
Acho que sem algum tipo de endurecimento não haverá jamais saída
para nós. O congresso derrubou o Collor, fez um gol, mas meio por
acaso. Não teria pressentido que o Collor estava articulando o golpe
civil para fechar o congresso? Não te espanta! Isso é seríssimo,
cara, mas acho que vai ser uma análise para outro dia.
— Deputados
e Senadores, em sua esmagadora maioria, defendem os poderosos, quando
não a própria corrupção, ou mesmo o crime organizado. E então? É
isso aí, cara, é a minha tese! Pelo congresso, dificilmente haverá
saída. Meu Deus estou delirando! Estou a um passo da direita!
Friamente é isso mesmo. Alie-se a inoperância do legislativo à
ineficácia histórica do judiciário, some-se a isso um Estado
falido, que é uma grande ferida aberta no sistema, pelo menos uma
grande parte do executivo, na verdade a maior parte, que não
funciona mesmo e tem-se a explicação porque o Fujimori fechou o
congresso.
— Seja
direita ou esquerda, num primeiro momento político após qualquer
ato revolucionário existirá sempre um golpe. Se o sistema é
democrático, ou plutocrático, como o nosso, o golpe será no
legislativo. Acontece que no começo tudo são flores, golpes tem
sempre um grande apoio popular. Só que depois degringola, ou não é
verdade? O caso do Fujimori é um exemplo incrível aonde esse fator
do crime organizado dá bem a medida da complicação. O Sendero
Luminoso é
uma direita travestida de esquerda. Tu achas que o Fujimori poderia
combater o crime organizado tendo nas mãos unicamente a estrutura do
Estado democrático? Nunca!! Eu nem quero defender o cara, só estou
tentando entender. O problema é que isso tudo é um perigo. Por
enquanto esta até dando certo, os militares estão entrosados, dando
corda no japonês, mas até quando?
— E
nós? Teremos um Fujimori, um general ou um Miterrand latino? Sei lá!
Esses dias eu refleti a reforma agrária japonesa com um japonês que
viveu tudo enquanto ela se fazia. Tu não imaginas como foi bom
reestudar a coisa fora daquilo que pesquisamos nos livros acadêmicos.
Apesar da guerra e da bomba atômica terem essa conotação imediata
e bombástica do negativo, ele, depois de anos e anos de vida e
reflexão, agora com 63 anos de idade, pensou comigo os aspectos
positivos desse absurdo, que também teve. Segundo ele há que se
reconhecer isso e um deles, sem dúvida, foi a reforma agrária
implantada por Mac Cartey, e aí começamos a pensar a coisa nesse
particular de ter sido um cara de fora a fazer o necessário, tás
compreendendo? Não tem nada mais, só isso aí. Fiquei pensando
muitíssimo nessa particularidade. Aliás, estou pensando até agora
e acho que esse mestre falou uma coisa demasiadamente séria.
— Se
os estudos antropológicos do Darcy Ribeiro estiverem corretos, como
eu penso que sim, os países de grande risco para revoluções
intestinas são a Bolívia, o Equador, o Peru e a Venezuela, e penso
que o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Chile, felizmente
distanciam-se cada vez mais dessa possibilidade.
— E
é justamente para o Peru que o Carlos vai, não é mesmo? Aí
residem as tuas preocupações, mas quem sabe tudo isso não passe de
cismas tuas?
— Não,
não são cismas. Não digo que não exista saída para o Carlos, mas
hoje vejo a coisa preta. Ele anda envolvidíssimo com um pessoal de
história de clandestinidade, gente que usa a garotada mesmo, que
pega a garotada na boca das universidades e faz a cabeça da turma. A
minha única esperança é que o Carlos tenha adquirido suficiente
formação no seio da família. Os caras o estão levando, fisgando,
cutucando os seus bons ideais. Como somente esses bons ideais não
bastam ainda para entender a complexidade dessa coisa toda que é a
vida, os sistemas, a sociologia, os caras vão se aproveitando. Na
verdade o Carlos é também um tipo violento. Ainda tem um pé
troglodita muito forte. Isso há que se considerar.
— Ele
é teu único filho, é isso aí, filho único é fogo! Ainda mais
que teu casamento que não deu certo, quase não tens podido viver
perto dele. Não esquenta não, tudo vai dar muito certo, precisas
confiar mais nas forças do astral superior, que são fortes,
poderosas, tem coisas que são do carma duma pessoa, se ele tem que
vivenciar aquilo, não vai ter jeito não.
— Vamos
ver. Semana que vem ele parte, rumo ao foco dos problemas latinos. A
última Veja tem
uma entrevista com o Fujimori. O japonês é tão ardiloso que quase
me convence da "excelência da ditadura civil". Que Deus
proteja o Carlos. Eu vou rezar muito por ele. E o Mariano, tens visto
a peça?
— Não,
ainda bem. Deus que me perdoe, mas eu tenho até dificuldade de
conversar muito com ele. Continua o mesmo pão-duro de sempre,
explorador, não compra um jornal e não bota a mão no bolso nem pra
pagar uma coca-cola.
— É
o Mariano mesmo!
Uma
risada que vai se transformando em uma boa gargalhada envolve os
amigos.
— Faz
uns dois dias fui visitar o Marcão. Deve ser a décima quinta
internação, sempre o mesmo e sempre a mesma coisa! Tu já conheces
o filme. Desta vez está no pavilhão dos alcoólatras do Caridade.
Se os caras descobrem que ele, além de álcool, puxa fumo e cheira
coca, nas horas vagas, expulsam-no de lá. É pavilhão
especializado. São cegos ainda, não admitem multi-drogados. É
triste ver o Marcão enclausurado naquela fortaleza de orgulho em que
se transformou, matando-se dessa maneira brutal.
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